sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

30/01 Carf, a lei deficiente e outras questões tributárias

A lei isenta de IPI os automóveis quando adquiridos por portadores de deficiência física, obviamente com a finalidade de facilitar a vida de quem tem mais dificuldade de locomoção. Todavia, para evitar burla, a norma limita tal isenção registrando que “somente poderá ser utilizada uma vez, salvo se o veículo tiver sido adquirido há mais de 2 (dois) anos”; sem prever uma exceção para quando ocorrer um infortúnio, como o roubo do automóvel, que é um motivo legítimo para haver nova aquisição antes de escoado o prazo legal.

E, ante a falta de antevisão do legislador para essa ocorrência potencial do cotidiano, Turma do Carf decidiu pela impossibilidade de fazer uma interpretação teleológica; assim ementado e fundamentado:

Acórdão 3801-004.754 (publicado em 26.12.2014)
IPI. ISENÇÃO. DEFICIENTE.

Não cabe a isenção de IPI para aquisição de veículo automotor prevista no inciso IV do art. 1º da Lei nº 8.989/95 quando não transcorrido o prazo de 2 (dois) anos para o exercício do direito a uma nova aquisição de veículo com isenção do IPI.

Voto (...)

Alega a recorrente que o veículo de sua propriedade adquirido com a isenção de IPI concedida às pessoas portadoras de deficiência foi roubado e que neste caso descabe a imposição do decurso do prazo de dois anos para a aquisição de novo veículo.

No entanto, não assiste razão ao recorrente, senão vejamos:

A Lei n° 8.989/1995 e os atos normativos regulamentadores não excepcionam o decurso do prazo de 2 (dois) anos para o exercício do direito ao benefício pleiteado, mesmo no caso de roubo de veiculo contemplado anteriormente com a isenção de IPI para pessoa portadora de deficiência.

Interpreta-se literalmente a legislação tributária que disponha sobre: outorga de isenção, conforme determina o art. 111, II, CTN, o que inviabiliza uma interpretação ampliativa ou mesmo analógica da norma com base em critério subjetivo de justiça do julgador.

Coisa julgada contrária

O acatamento da coisa julgada, quando passa a estar em confronto com uma interpretação pacificada no STF em sentido contrário, é uma questão em baila na via administrativa, notadamente em relação a contribuintes que obtiveram decisões transitadas em julgado desonerando a cobrança de CSLL. Nesses casos, a Receita Federal autua alegando mudança do quadro jurídico, já que o STF assentou, posteriormente, a constitucionalidade do tributo.

Todavia, no caso abaixo ocorreu uma inversão de papéis: a decisão transitada prejudicava o contribuinte. É que, na época em que era exigido um depósito recursal na via administrativa, o contribuinte tentou afastar judicialmente essa obrigatoriedade, mas transitou em julgado decisão apontando que teria que ser efetuado o depósito recursal; e, portanto, o recurso do contribuinte para o Carf não poderia ser conhecido.

Ocorre que, posteriormente, o STF julgou o depósito recursal inconstitucional, inclusive editando a Súmula Vinculante 21; o que levou Turma do Carf a afastar a coisa julgada e, no mérito, dar provimento parcial para reconhecer a decadência de parte da autuação; assim ementado:

Acórdão 2302-003.326 (publicado em 21.01.2015)
DEPÓSITO RECURSAL. EXIGIBILIDADE. COISA JULGADA INCONSTITUCIONAL. SÚMULA VINCULANTE N° 21.

Ainda que haja decisão transitada em julgado determinando a exigibilidade de depósito recursal, em razão da edição da Súmula Vinculante n° 21, o Recurso Voluntário deve ser conhecido.

A Constituição Federal garante o respeito à coisa julgada, não podendo nem mesmo a lei alterar os efeitos jurídicos dela decorrentes (art. 5°, XXXVI). Todavia, a compreensão ou a ordem decorrente da coisa julgada inconstitucional pode ser revista com base em decisão do guardião da Constituição que declare lei, ato normativo, aplicação ou interpretação incompatíveis com a Constituição Federal.

A nova compreensão sempre decorrerá de decisão proferida pelo guardião da Constituição e se baseará em norma de status superior Constituição Federal àquela que traz a própria definição legal de coisa julgada, que tem status Lei Ordinária (art. 6°, § 3°, da Lei de Introdução às normas de Direito Brasileiro Decreto-Lei n° 4.657/42). Ou seja, a discussão que se trava pode ser solucionada pelo critério hierárquico, opondo-se a coisa julgada garantida na Constituição, mas cuja definição é feita por Lei Ordinária, com a manifestação definitiva do guardião da Constituição a respeito de lei, ato normativo, aplicação ou interpretação incompatíveis com a Constituição Federal.

Inteligência do parágrafo 1° do art. 475-L e do parágrafo único do art. 741 do CPC e Pareceres PGFN/CRJ n° 891/2010 e o n° 1973/2010.

Prazos dúplices

Durante um período, o processo eletrônico da Receita Federal trazia a informação que o contribuinte seria considerado intimado, de alguma decisão, quinze dias após a disponibilização do arquivo no sistema, quando, a partir daí, começaria a correr o prazo recursal. Mas, quando o contribuinte acessava o arquivo, era gerado outro termo, que também poderia ser usado como marco inicial para a contagem do dies a quo.

Ante a concomitância de aberturas de prazo recursal, Turma do Carf posicionou-se pela contagem mais larga, para no caso concreto afastar a intempestividade, prestigiando a ampla defesa; assim ementado:

3403-003.444 (publicado em 05.01.2015)
PRAZO PARA INTERPOSIÇÃO DE RECURSO VOLUNTÁRIO. DOMICILIO ELETRÔNICO. DUPLICIDADE DE NOTIFICAÇÃO. TERMO DE ABERTURA E TERMO DE CIÊNCIA POR DECURSO DE PRAZO.

Havendo duplicidade de notificação do acórdão da DRJ, emitindo-se Termo de ciência por Decurso de Prazo mesmo depois da expedição de Termo de Abertura, deve prevalecer a forma de contagem que assegure a ampla defesa do contribuinte. Além disso, até o advento da Lei nº 12.844/2013 (DOU de 19/07/2013) a ciência por via eletrônica apenas acontece validamente por decurso de prazo, devendo prevalecer em relação ao termo de abertura (PA nº 13864.720116/201292).

Encargos em xeque

Nos Embargos de uma Execução Fiscal, analisada a incidência do encargo legal de 20%, a ser pago pelo executado, como renda da União. A sentença considerou inconstitucional a cobrança, pois o encargo tem natureza de um indevido tributo; assim fundamentada:

Embargos à Execução Fiscal 0000666-76.2014.403.6115 (publicado em 20.01.2015)
Do art. 57, 2º, da Lei 8.383/91, resta claro que o encargo legal incide sobre o total do débito consolidado, inclusive sobre os juros e a multa. Assim, na hipótese de uma inscrição feita a partir de declaração do contribuinte, com multa de 20% e juros por aproximadamente cinco anos pela taxa SELIC, teremos, por exemplo: TRIBUTO: 100.000, JUROS: 80.000, MULTA MORATÓRIA: 20.000, DÉBITO CONSOLIDADO 200.000, ENCARGO LEGAL: + 40.000, TOTAL COBRADO: 240.000

Em um caso de multa de ofício, atualmente estabelecida pela legislação em 75%, teríamos: TRIBUTO: 100.000, JUROS: 80.000, MULTA DE OFÍCIO: 75.000, DÉBITO CONSOLIDADO 255.000, ENCARGO LEGAL: + 51.000 TOTAL, EXECUTADO: 301.000

Há situações em que, em face do tempo decorrido e da maior dimensão assumida pelos juros, o encargo poderá mostrar-se até mesmo mais significativo, pois incide também sobre os juros, como visto. (...)

O vasto volume de precedentes do STJ que determinam a aplicação do encargo legal, pois, não chegam a influir na análise constitucional, que passarei a propor. Aliás, cuida-se, efetivamente, de matéria afeita à consideração do Supremo Tribunal Federal, de maneira que é relevante analisar qual o seu entendimento sobre questões como esta. (...)

A inscrição, privilégio do Fisco, é instrumental para a cobrança do crédito tributário: tributo, com os juros, e multa. A aplicação do DL 1.025/69 acaba por implicar a cobrança de mais uma verba, acrescida àquelas previstas no CTN, com o que invade matéria reservada à lei complementar. (...)

Efetivamente, despesas com cobrança todos os credores têm. Ademais, seja a título de honorários ou de despesas administrativas, a ausência de um teto à sua exigência atenta contra o princípio constitucional da razoabilidade, por potencial ausência de equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona. Efetivamente, quando os tribunais fixam honorários advocatícios, estabelecem valores percentuais para matéria tributária muito aquém dos 20%, aplicando 10% para ações de valor que não ultrapasse o razoável e, quanto ao mais, estabelecendo-os em 5% ou 2%, ou mesmo arbitrando-os em valor fixo, que não implique valores completamente dissociados da possível remuneração do trabalho desenvolvido. (...)

O estabelecimento do elevado percentual de 20%, sem qualquer moderação ou limite, podendo implicar, em ações milionárias, encargo igualmente milionário, em nada proporcional aos custos administrativos incorridos tampouco ao trabalho advocatício eventualmente desenvolvido, carece de razoabilidade, violando os direitos do contribuinte. Ademais, revela que não se trata propriamente de ressarcimento de despesa efetiva, tampouco de honorários, mas de tributo. (...)

Tem-se, pois, indubitavelmente, um tributo, caracterizado pelos requisitos do art. 3º do CTN. Ocorre que, como tal, também não se sustenta, eis que não se enquadra em nenhuma das espécies tributárias. Não há que se vislumbrar capacidade contributiva a justificar a cobrança de imposto ou de contribuição, tampouco de taxa não se trata, porque não se cuida de serviço específico e divisível prestado ao contribuinte nem de exercício do poder de polícia (...). Tenho, pois, que o encargo em questão, como tributo, não encontraria amparo nas normas de competência: arts. 145, 148 e 149, 153, 154, I, do CTN, carecendo, pois, de suporte constitucional.

Decisões variadas

a) No Acórdão 9303-002.459 (publicado em 22.01.2015), a CSRF do Carf estabeleceu, a contrário senso, que o marco, para que uma decisão judicial sem trânsito em julgado pudesse ser utilizada em compensação, é o encontro de contas ter sido anterior à vigência da LC nº 104/2001; assim ementado: “é vedada a compensação de débito fiscal, mediante a apresentação de declaração de compensação (Dcomp), com crédito financeiro contra a Fazenda Nacional, objeto de discussão judicial, antes do trânsito em julgado da respectiva decisão, nos casos em que o efetivo encontro de contas se deu após a vigência da Lei Complementar 104/2001”.

b) No Acórdão 9101-002.054 (publicado em 23.01.2015), a CSRF do Carf, apreciando caso em que o contribuinte foi autuado com base em instruções de cálculo de isenção constantes de Manual de Preenchimento da Declaração do IR, apontou a supremacia das normas formais; assim ementado: “o MAJUR é um manual que orienta o contribuinte, este não tem força de lei e não compõe o conjunto denominado ‘legislação tributária’ do artigo 96 do CTN, razão pela qual, nos termos do artigo 97 do CTN, não pode determinar a forma de apuração do adicional do IRPJ diversa da prevista no regulamento do Imposto de Renda, restringindo direito do contribuinte previsto em Lei”.

c) No Acórdão 3202-001.351 (publicado em 27.01.2015), Turma do Carf, para definir a natureza de operação de ingresso de recursos no país, e desconsiderar para mútuo o que estava registrado como investimento estrangeiro direto, aparta a questão tributária da cambial; assim ementado: “embora o controle sobre a entrada e a saída de divisas do país tenha sido atribuída ao Bacen, a verificação dos reflexos tributários dessas operações é da competência da Administração Fazendária”.

d) No Parecer PGFN/CAT 21/2015 (publicado em 09.01.2015), a PGFN, respondendo à Receita Federal, não admite que um ato concessório de drawback possa ter a titularidade alterada por conta de operação de drop down (substituição patrimonial, com troca de ativos por participação societária), pois não é uma operação já prevista em norma, como trespasse, cisão, incorporação ou fusão; assim concluindo: “17. Ora, se o drop down não figura como ‘caso de sucessão legal, nos termos da legislação pertinente’, como preconiza o art. 99 da Portaria Secex nº 23/11, sendo uma operação ainda não regulamentada no ordenamento pátrio, não vemos, data maxima venia, como admitir a alteração de titular de ato concessório de drawback, por equiparação com a cisão, sob pena de violação do art. 111, II, do CTN. Não cabe aqui, reiteramos, o recurso à intepretação extensiva ou utilização da analogia”.

por Mary Elbe Gomes Queiroz é advogada e professora, pós-doutora em Direito Tributário pela Universidade de Lisboa, e doutora pela PUC-SP; mestre em Direito Público pela UFPE; presidente do Centro de Estudos Avançados de Direito Tributário e Finanças Públicas do Brasil; presidente do Instituto Pernambucano de Estudos Tributários; membro imortal da Academia Brasileira de Ciências Econômicas, Políticas e Sociais; membro do Conselho Jurídico da Fiesp (Conjur); sócia do escritório Queiroz Advogados Associados e Palestrante da FocoFiscal.

   Antonio Elmo Queiroz é advogado, sócio do escritório Queiroz Advogados Associados e diretor do Centro de Estudos Avançados de Direito Tributário e Finanças Públicas do Brasil.

Fonte: Conjur

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