terça-feira, 26 de novembro de 2013

26/11 Bônus e ônus do ágio

Já cantou Caetano Veloso: “cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”. Essa frase rompe com qualquer tentativa de reserva de bondade ou de maldade. Ao se aceitar um “ser”, aceita-o na sua integralidade, com todas as suas virtudes, com todos os seus vícios, enfim, com todas as suas consequências.

O referido “ser” pode ser substituído por “conceito” (do ponto de vista ontológico) e, dessa forma, o verso de Caetano Veloso aplica-se, perfeitamente, ao ágio de investimento, ou apenas ágio ou, ainda, “goodwill”.

Pegando carona na regulamentação dos efeitos tributários da adoção dos padrões internacionais de contabilidade (IFRS) pelas empresas brasileiras, a Medida Provisória nº 627 aproveitou para disciplinar o ágio (”goodwill”) em dois aspectos controvertidos para a Receita Federal: o chamado “ágio interno” e aquele gerado em operações de reestruturação societária que não contam com fluxo financeiro, ou seja, são realizadas sem pagamento em dinheiro. Ambos os casos foram expressamente vedados pelo novo texto legal.

Neste momento, convém algumas palavras de esclarecimento: ágio (“goodwill”) é o sobrepreço que o adquirente paga em relação ao valor patrimonial do bem adquirido – no caso, a participação societária. No caso de compra de empresa, a justificativa econômica natural para que o valor pago seja superior ao valor de mercado (com o perdão do reducionismo) da empresa vendida reside na expectativa de rentabilidade futura.

Por “ágio interno”, entende-se aquele que decorre de operações de aquisição de participação societária (ações ou quotas) realizadas entre empresas pertencentes a um mesmo grupo econômico. Abrindo mão de uma metáfora utilizada por um amigo meu, bastante conhecedor das normas contábeis, ninguém pode ficar mais rico vendendo o próprio apartamento a si mesmo. Ou seja, não haveria justificativa econômica para que uma empresa pague sobrepreço (ágio) para adquirir outra que esteja sob o mesmo controle (partes de um mesmo grupo econômico), porque, ao fim e ao cabo, o comprador e o vendedor seriam a mesma pessoa.

Acontece que a invocada ausência de justificativa econômica é a regra geral, que, como tal, comporta exceções. Nesse sentido, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) já se manifestou no caso da Mahle Metal Leve S.A., em julgamento de 2011: foi aceita a possibilidade de reconhecimento do ágio, ainda que a operação fosse realizada entre empresas sob controle comum.

Considerando essa exceção, foram propostas algumas emendas a esse dispositivo específico da Medida Provisória nº 627. O senador Francisco Dornelles (Emenda 474) e o deputado Otavio Leite (Emenda 419) propõem que o ágio interno tenha efeitos tributários, desde que a operação haja reconhecimento desse sobrepreço pela CVM. De maneira mais detalhada, os senadores Armando Monteiro (Emenda 67) e Aloysio Nunes Ferreira (Emenda 350) elencam alguns requisitos para que o ágio interno tenha efeitos tributários, dentre os quais, destaco a oferta pública para aquisição de ações (OPA).

Chamo a atenção para esse requisito específico por que a OPA é um mecanismo de proteção dos minoritários, previsto expressamente na lei societária. Em sendo assim, a OPA tem relação íntima com o ágio (“goodwill”), porque, de acordo com as normas contábeis, esse sobrepreço somente se justifica quando há aquisição de controle (combinação de negócios, em termos técnicos).

Portanto, pode haver ágio em operações entre empresas pertencentes ao mesmo grupo econômico, desde que existam interesses de minoritários que devam ser protegidos – motivo pelo qual, é importante que esse dispositivo específico da medida provisória seja emendado.

Agora, já estamos em condições de discutir o ágio em operações de reestruturação societária que não contam com fluxo financeiro, ou seja, sem pagamento em dinheiro, cujos principais exemplos são a permuta de ações e a incorporação de ações – situações expressamente vedadas pela medida provisória quando feita referência à “operação de substituição de ações ou quotas de participação societária”.

Como visto, a regra geral é que o ágio (“goodwill”) somente se justifica quando há aquisição de controle societário (combinação de negócios). Ocorre que essa aquisição pode pressupor pagamento em dinheiro (fluxo financeiro) ou não.

A norma contábil reconhece que o controle de uma empresa pode ser adquirido sem que haja transferência de caixa (pagamento em dinheiro), citando as seguintes hipóteses: pela assunção de passivos;  quando a empresa recompra um número tal de suas próprias ações de forma que determinado investidor acaba obtendo o controle sobre ela; quando um eventual direito de veto de não controladores que antes impedia uma determinada pessoa de controlar a empresa perde efeito; ou por meio de acordos puramente contratuais (acordo de acionistas, por exemplo).

Então, não há motivos razoáveis para que a legislação tributária deixe de considerar o ágio gerado em operações de substituição de ações ou quotas de participação societária (permuta ou incorporação de ações, por exemplo), porque é plenamente factível que nessas operações haja a transferência de controle (aquisição de controle ou combinação de negócios).

Por outro lado, o reconhecimento do ágio nas operações de permuta e de incorporação de ações implica, necessária e inescapavelmente, a obrigação da prévia realização de oferta pública para a aquisição de ações. Isso porque, de acordo com a legislação societária, esse mecanismo de proteção aos minoritários se aplica em toda e qualquer mudança de controle da empresa.

Como conclusão, fica o ensinamento de que o direito contábil contribui para a visão integral dos reflexos jurídicos das operações empresariais: no caso do ágio (“goodwill”), a disciplina tributária deixa às claras a operação realizada, permitindo o adequado enquadramento para efeito dos direitos societários.

Fonte: Blog Fio da Meada – Valor Econômico
Via CFC

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