segunda-feira, 22 de agosto de 2016

A dedutibilidade do ágio gerado em operações de privatização

Esse artigo tem por objetivo apresentar os primeiros precedentes da Primeira Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais do CARF relativos à dedutibilidade, para fins de apuração de IRPJ e CSLL, de despesas de amortização de ágio gerado em operações de desestatização (privatização) de empresas públicas [1].

Da Jurisprudência do CARF até 2015
Conforme se extrai da obra “Repertório Analítico de Jurisprudência do CARF”  [2] (“Repertório”), o CARF proferiu os primeiros julgamentos a respeito do tema a partir do ano de 2010. Dentre os julgados relacionados a investimentos adquiridos em programas de privatização, vale destacar os seguintes casos e respectivos resultados, conforme tabela extraída do Repertório [3]:


O Repertório evidencia que os casos de ágio gerado no contexto das privatizações não versam, em sua grande maioria, a respeito do montante, fundamento econômico e prazo de amortização do ágio [4]. Tampouco se controverte a respeito da regularidade dos documentos e laudos produzidos pelo contribuinte para registro contábil respectivo.

Nesses casos, discute-se, no mais das vezes, (a) se as operações societárias realizadas pelo contribuinte (e que permitiram a dedutibilidade do ágio na forma da Lei n. 9532/97) possuem substância econômica suficiente para produzirem os efeitos fiscais que lhe são próprios; ou (b) se a utilização de “empresa-veículo” de investimento [5] permitiria à Fiscalização sustentar não ter ocorrido “confusão patrimonial” (ou, melhor dizendo, a operação de fusão, cisão ou incorporação) imposta como requisito de amortização fiscal do ágio na forma da lei [6].

O Repertório revela ainda que – embora não se possa afirmar que houvesse jurisprudência firmada a favor dos contribuintes antes de 2015 – as Turmas Ordinárias do CARF possuíam entendimento majoritário no sentido de que a utilização de empresas-veículo no âmbito das privatizações não seria suficiente para afastar o propósito negocial das operações respectivas e o direito dos contribuintes à amortização do ágio. Esse entendimento estava justificado, em síntese,(a) nos objetivos da Lei 9.532/97 e no contexto histórico de sua edição, voltado especificamente ao incentivo à desestatização das empresas públicas; (b) na inexistência de dúvida a respeito da origem, do pagamento e do fundamento econômico do ágio; e (c) no reconhecimento do propósito negocial da estrutura societária adotada pelo contribuinte por força das restrições regulatórias impostas pela Comissão de Valores Mobiliários (“CVM”) e pelas Agências Reguladoras (ANEEL e ANATEL, principalmente), as quais tornavam inviável a aquisição de participação societária de empresas públicas sem lançar mão de complexos arranjos societários.

Não havia, até 2015, precedentes da Câmara Superior de Recursos Fiscais sobre o tema.
Dos Precedentes da Primeira Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais do CARF a partir de 2015

Poucos dos precedentes acima citados foram submetidos à apreciação da 1ª Turma da CSRF posteriormente ao retorno das atividades do CARF no ano de 2015.

Serão tratados apenas os casos CELPE e COSERN (Ac. 9101-00.2186/2.187 e Ac. 9101—002.303/2.304, respectivamente), os quais são os únicos que se tem notícia terem sido julgados pela CSRF a respeito do tema. Embora tenha sido pautado, o caso SANTANDER teve seu julgamento convertido em diligência para aferição dos pressupostos processuais do recurso especial interposto pela Fazenda Nacional.

No caso CELPE, discute-se a amortização do ágio gerado na desestatização da Companhia de Eletricidade de Pernambuco, realizada em 2000. Nessa operação, 100% das ações da CELPE foram adquiridas por um consórcio de entidades de direito privado, com o efetivo pagamento de ágio ao Poder Público Federal fundamentado em expectativa de rentabilidade futura.

Após a aquisição da participação societária da CELPE, o consórcio investidor subscreveu capital em empresa denominada GUARANIANA S/A, integralizando-o com ações da CELPE. A GUARANIANA S/A, por sua vez, subscreveu capital na LEICESTER COMERCIAL S/A, integralizando-o com as participações detidas da CELPE. Ao final, a CELPE incorporou a LEICESTER COMERCIAL S/A, passando a amortizar o ágio registrado (o qual encontra imediata causa e correspondência com o valor do ágio pago no ato de aquisição de participação societária perante a União Federal).

Por apertada maioria de votos, entendeu a CSRF que “a subsunção aos artigos 7º e 8º da Lei n. 9.532/97, (…), exige a satisfação dos aspectos temporal, pessoal e material. Exclusivamente no caso em que a investida adquire a investidora original (ou adquire diretamente a investidora de fato) é que haverá o atendimento a esses aspectos, tendo em vista a ausência de normatização própria que amplie os aspectos pessoal e material a outras pessoas jurídicas ou que preveja a possibilidade de intermediação ou de interposição por meio de outras pessoas jurídicas. Não há previsão legal, no contexto dos artigos 7º e 8º da Lei n. 9.532/1997 e dos artigos 385 e 386 do RIR/99, para transferência de ágio por meio de interposta pessoa jurídica da pessoa jurídica que pagou o ágio para a pessoa jurídica que o amortizar, que foi o caso dos autos, sendo indevida a amortização do ágio pela recorrida”.

Nesse precedente, a CSRF entendeu ser inadmissível, para os fins de que trata a Lei 9.532/97, a utilização de empresa-veículo que recebeu, por subscrição de capital de sua controladora, participação societária anteriormente adquirida com ágio perante o Poder Público. A despeito das razões societárias e regulatórias que justificaram a adoção da estrutura societária pelo contribuinte, as quais impediram que o tido “real adquirente” ou “adquirente originário” fosse incorporado ou incorporasse diretamente a “real investida” ou “empresa alvo”, conforme pretendido pela Fiscalização da RFB, a 1ª Turma da CSRF preferiu adotar interpretação restritiva da legislação fiscal para negar a amortização de ágio que tenha sido “transferido” a terceira empresa, ainda que essa terceira empresa tenha sido posteriormente incorporada pela empresa operacional originalmente adquirida com ágio.

O mesmo ocorre com o caso COSERN, que também se refere à desestatização de empresa do setor elétrico.

Discute-se na hipótese a amortização do ágio gerado na privatização da Companhia Energética do Rio Grande do Norte, ocorrida em 1997. Nessa operação, 100% das ações representativas do capital da COSERN foram adquiridas por um consórcio formado pelas empresas COMPANHIA DE ELETRICIDADE DA BAHIA, GUARANIANA S/A e UPTICK PARTICIPAÇÕES S/A, com o efetivo pagamento de ágio por expectativa de rentabilidade futura.

Após a aquisição da citada participação societária, as empresas integrantes do consórcio criaram a IBIDEM, subscrevendo e integralizando o capital social com ações da COSERN. Posteriormente, a COSERN incorporou a IBIDEM e passou a amortizar o ágio anteriormente registrado na empresa-incorporada (o qual também encontra causa e correspondência com o valor do ágio pago no ato de aquisição de participação societária perante a União Federal).

Ao analisar o caso, a 1ª Turma da CSRF entendeu, por estreita maioria de votos provenientes apenas de Conselheiros representantes da Fazenda Nacional, que a incorporação da IBIDEM pela COSERN não atenderia ao disposto nos artigos 7º e 8º da Lei 9.532/97, pois tal operação não teria envolvido a “investidora originária” e o respectivo “investimento”, na forma da lei fiscal.

Segundo esse precedente, “os artigos 7º e 8º da Lei n. 9.532, de 10/12/1997 se dirigem às pessoas jurídicas (1) real sociedade investidora, aquela que efetivamente acreditou na mais valia do investimento, fez os estudos de rentabilidade futura, decidiu pela aquisição e desembolsou originariamente os recursos, e (2) pessoa jurídica investida. Deve-se consumar a confusão de patrimônio entre essas duas pessoas jurídicas, ou seja, o lucro e o investimento que lhe deu causa passam a se comunicar diretamente. Compartilhando do mesmo patrimônio a controladora e a controlada ou coligada, consolida-se cenário no qual os lucros auferidos pelo investimento passam a ser tributados precisamente pela pessoa jurídica que adquiriu o ativo com mais valia (ágio). Enfim, toma-se o momento em que o contribuinte aproveita-se da amortização do ágio, mediante ajustes na escrituração contábil e no LALUR, para se aperfeiçoar o lançamento fiscal com base no regime de tributação aplicável ao caso e estabelecer o termo inicial para contagem do prazo decadencial”.

Em suma, a despeito das razões apresentadas pela contribuinte, não se admitiu como válida, para fins fiscais, a incorporação de empresa-veículo de investimento que recepcionou participação societária adquirida com ágio, sob alegação (a) de ausência de previsão na lei fiscal; e (b) de a IBIDEM não ter substância econômica por ter sido criada apenas para possibilitar que a COSERN amortizasse o ágio gerado na sua própria desestatização.

Por fim, um alento aos contribuintes
Mesmo após a edição dos dois precedentes pela 1ª Turma da CSRF acima citados, a 1ª Turma da 3ª Câmara da 1ª Seção do CARF proferiu oAc nº 1301-002.047, no qual se discute a amortização do ágio gerado em decorrência da aquisição da Companhia de Transmissão de Energia Elétrica Paulista – CTEEP perante o Estado de São Paulo.

Em 2006, a ISA CAPITAL DO BRASIL S/A adquiriu o bloco de controle da CTEEP. Posteriormente, em 2007, realizou oferta pública de ações para aquisição de outras ações da CTEEP. Após, a ISA CAPITAL DO BRASIL S/A subscreveu aumento de capital na ISA PARTICIPAÇÕES DO BRASIL LTDA., integralizando-o com ações da CTEEP. Em momento posterior, a CTEEP incorpora a ISA PARTICIPAÇÕES DO BRASIL LTDA. e passa a amortizar o ágio gerado na aquisição de suas ações.

Diferentemente da 1ª Turma da CSRF, o precedente citado afirma ser lícita “a conduta do investidor que adquire diretamente o investimento, com pagamento de ágio, e, a seguir, promove aumento de capital em outra empresa, integralizando-o com os investimentos previamente adquiridos, inclusive o ágio. Não se pode qualificar como ilícita a opção por um caminho facultado pela legislação, ainda que a adoção de tal caminho tenha por objetivo a economia tributária. Essa conclusão fica especialmente reforçada na situação em comento, em que a operação “direta”, que permitiria o aproveitamento fiscal do ágio sem qualquer questionamento, encontrava intransponíveis óbices societários (CVM) e regulatórios (ANEEL)”.

Admitiu-se, portanto, que, ante os comprovados entraves societários e regulatórios impostos pelo próprio Poder Público (União Federal, inclusive, por intermédio da ANEEL), a incorporação de empresa-veículo que recepciona investimento adquirido com ágio possui substância econômica e atende ao disposto nos artigos 7º e 8º da Lei n. 9.532/97 para fins de amortização fiscal da mais-valia respectiva.

Mas não é só. Diferentemente de outros julgamentos do CARF, o precedente em análise reconheceu expressamente que – ainda que não fossem dedutíveis para apuração do lucro real tributado pelo IRPJ – as despesas de ágio seriam dedutíveis para fins de CSLL, sob o fundamento de que as bases de incidência desses tributos são distintas e não existiria norma que determine indedutibilidade respectiva para cálculo da contribuição social.

Conclusões
Diante das considerações acima, conclui-se que:
1. A jurisprudência das Turmas Ordinárias do CARF permitia, majoritariamente, antes de 2015, a amortização de ágio gerado em operações societárias em processos de desestatização de empresas estatais, ainda que houvesse a utilização de empresas-veículo pelos contribuintes;
2. Não há jurisprudência da Primeira Turma da CSRF sobre o tema antes de 2015;
3. Os poucos precedentes da 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais, a partir de 2015, estabeleceram que os artigos 7º e 8º da Lei n. 9.532/97 não permitiriam a amortização de ágio decorrente da incorporação de empresa-veículo destinada à recepção de participação societária de empresa pública anteriormente adquirida com ágio no contexto das privatizações;
4. Há precedente de Turma Ordinária do CARF após a edição dos citados julgamentos da CSRF que reconhece ser lícita a conduta do investidor que adquire diretamente o investimento, com pagamento de ágio, e, a seguir, promove aumento de capital em outra empresa, integralizando-o com os investimentos previamente adquiridos, dentre eles o ágio, especialmente se considerado o fato de que a “incorporação direta” exigida pela Receita Federal do Brasil (e, em última análise, pelos citados precedentes da 1ª Turma da CSRF) encontra intransponíveis entraves regulatórios e societários impostos pelo Poder Público, inclusive a própria União Federal.
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[1] Está-se tratando aqui do ágio gerado e amortizado na forma da Lei n. 9.532/97, instituída no contexto do Plano Nacional de Desestatização – PND. Não serão mencionadas nesse artigo as disposições sobre ágio previstas na Lei n. 12.973/2014, pois estranhas às operações societárias e aos casos adiante citados.
[2] Série Tributação & Desenvolvimento. Coordenadores: Eurico Marcos Diniz di Santi, Susy Gomes Hoffmann, Karem Jureidini Dias, Breno Ferreira Martins Vasconcelos, Daniel Souza Santiago da Silva. São Paulo: Editora Max Limonad; FGV Direito SP, Escola de Direito de São Paulo, 2016. O livro “Repertório Analítico da Jurisprudência do CARF, na versão papel e pdf ou e-pub”, que surgiu em formato de artigos no JOTA, está disponível no site.
[3] Repertório Analítico de Jurisprudência do CARF, ob. cit., p. 281 a 285. Apenas a referência ao Ac. 1102-000.873 citado na tabela teve redação alterada em relação à versão original da obra.
[4] Excepcionalmente, no caso TIM citado na tabela acima, discutiu-se qual seria o valor do ágio passível de amortização com efeitos fiscais, se (a) o valor original do ágio pago na aquisição do investimento; (b) ou o valor do ágio existente na contabilidade no momento da realização da incorporação da empresa adquirida. Também excepcionalmente, examinou-se no caso RIO GRANDE ENERGIA se o prazo de amortização do ágio seria (a)aquele previsto no laudo técnico que embasou a operação societária; ou (b) aquele remanescente para o fim da concessão.
[5]“Sociedades cujo propósito específico seja a viabilização e a facilitação da operação” de venda e compra de participação societária. (In.: Repertório Analítico de Jurisprudência do CARF, ob. cit., p. 290).
[6] Aqui é importante fazer breve diferenciação entre os possíveispropósitos das empresas-veículo, os quais podem influenciar na interpretação sobre o reconhecimento de efetiva compra/venda de participação societária e consequente amortização do ágio dela (compra e venda) decorrente. Em síntese, identifica-se (a) empresas-veículo para aquisição de participação societária, por meio da qual, em regra, o controlador aporta capital para que a empresa-veículo realize diretamente a compra da participação societária; (b) empresas-veículo para alienação de participação societária, por meio da qual o controlador subscreve a participação societária que será posteriormente vendida a uma parte não relacionada; e (c) empresas-veículo cuja aquisição de participação societária decorre de subscrição de capital, que permite a “transferência de ágio” a essa terceira empresa proveniente de operação anterior de venda e compra de participação societária entre partes não relacionas. 

Por Antonio Carlos Guidoni Filho
Advogado. Mestre e Doutor em Direito pela USP. Ex-Conselheiro da 1a Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais e da 1a Seção do CARF

Fonte: Jota

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