quarta-feira, 20 de agosto de 2014

20/08 Governança corporativa e acumulação de cargos

Recentemente, determinada companhia aberta comunicou ao mercado que a BM&FBovespa lhe concedera prazo adicional para que se adequasse às normas que proíbem a acumulação dos cargos de presidente do conselho de administração e de diretor-presidente de companhias listadas no Novo Mercado. Esse fato descortina um desacerto do modelo autorregulatório, que merece reflexão.

A atual Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404, de 1976), concebida na década de 70, elegeu - e ainda elege - como sua figura nuclear o acionista controlador. Menos do que ideológica, essa opção foi pragmática (e supostamente nacionalista): a ideia era construir um modelo regulatório capaz de incentivar o surgimento ou o fortalecimento da macroempresa brasileira.

Conferiu-se ao acionista controlador a possibilidade de indicar a maioria dos membros do conselho de administração e, consequentemente, a diretoria. Não é raro, aliás, que o detentor da maioria do capital votante não apenas ocupe assento em ambos os órgãos como, ademais, os presida.

A proibição de acumulação, da forma como foi introduzida, não protege o acionista e não lhe traz benefícios

Para companhias fechadas ou mesmo abertas, listadas no segmento "tradicional", essa situação permanece inalterada. Mas desde 2011 outra passou a ser a realidade das companhias listadas no Novo Mercado.

Naquele ano promoveu-se uma reforma dos regulamentos dos três níveis de listagem do Novo Mercado, inserindo-lhes, dentre outras novidades, a proibição de acumulação. Ao lado da proibição, previu-se um período de transição, de três anos (portanto, até maio deste ano), para que as companhias se adaptassem à nova regra.

Passado esse período, não mais se admite a acumulação, exceto em casos excepcionais, devidamente fundamentados, e desde que a BM&FBovespa conceda período adicional.

Mas qual foi a motivação da proibição? E quais interesses se tutelavam? Tentemos descobrir.

O estado da governança no Brasil se inicia especialmente a partir das privatizações e da intensificação do apelo à poupança pública como forma de captação de recursos para financiamento das atividades das companhias. Mas o seu grande marco foi justamente a criação do Novo Mercado, ambiente em que centenas de companhias abriram seus capitais.

Intensificaram-se, a partir dessas aberturas, situações de companhias controladas por acionistas detentores de menos da metade do capital votante ou, em casos extremos de pulverização da propriedade acionária, dominadas por administradores, rompendo-se a relação propriedade/controle. Esses dois cenários passaram a conviver com o cenário tradicional de controle majoritário, em que uma pessoa ou bloco de pessoas detém a maioria do capital social votante.

Esse cenário torna ainda mais fascinante a questão da motivação. Afinal, o que precisamente fundamentou a proibição da acumulação: proteção do minoritário em relação ao acionista controlador? Ou a proteção da minoria dispersa em relação ao controlador minoritário? Ou, ainda, nos casos de extrema dispersão, a proteção dos acionistas da dominação "gerencial"?

A realidade brasileira, que começa a se caracterizar pela heterogenia, não comporta solução única e genérica. Negar esse estado de coisas implica aceitar uma de duas consequências: (i) inocuidade, visto que, havendo um controle "estável", seja ele majoritário ou minoritário, ou mesmo gerencial, o controlador indicará, para um dos cargos, pessoa de sua confiança ou influência, mantendo-se a relação de poder; ou (ii) instabilidade, pois quando o controle for "instável", a mudança forçada tende a gerar tensões internas e batalhas silenciosas pelo poder.

Revela-se, portanto, que a proibição de acumulação se trata de intromissão externa na organização interna, inócua na companhia caracterizada pelo controle estável - pois o controlador indica um sucessor ou pessoa de sua confiança para executar o que lhe ditar -, e desestabilizadora na companhia com controle instável, podendo incentivar, artificialmente, desalinhamento e disputa entre os dois órgãos, ou entre blocos de acionistas.

Em qualquer desses cenários, o acionista detém, além dos direitos e das medidas previstas em lei, um recurso fulminante contra eventual inconformismo em relação à acumulação: a venda de suas ações. E o investidor que julgar a acumulação uma prática intolerável de governança, outra ainda mais poderosa: não comprar ações da companhia. E assim o mercado se resolve, naturalmente.

Sob outro prisma, a proibição de acumulação, da forma como foi introduzida, não protege o acionista e não lhe traz benefícios. Apenas cria uma artificialidade, propensa ao surgimento de disputas pelo controle empresarial e, talvez, pelo controle societário.

Feitas essas observações, retoma-se o fato inicialmente abordado: a decisão da BM&FBovespa de, nos termos dos regulamentos de listagem do Novo Mercado, autorizar determinada companhia a manter a estrutura acumulativa por período adicional. Apesar de acertada devido às características do caso em que se deu, encobre o verdadeiro problema do modelo: a equivocada proibição de acumulação dos principais cargos de conselho de administração e diretoria.

De modo que a competência para decidir sobre a acumulação, ou não, dos principais cargos de diretoria e do conselho deveria, como princípio, ser devolvida pelo regulador aos acionistas das companhias listadas no Novo Mercado, e revista com base em um modelo híbrido, que admite as diferenças entre os três cenários de controle - majoritário, minoritário e gerencial.

por Rodrigo R. Monteiro de Castro é professor de direito comercial do Mackenzie, presidente da Comissão de Acompanhamento do Código Comercial da OAB, vice- presidente do Conselho do MDA e sócio de Lehman, Warde e Monteiro de Castro Advogados

Fonte: Valor Econômico  

Nenhum comentário:

Postar um comentário