sexta-feira, 14 de março de 2014

14/03 Ação Popular Tributária é garantia constitucional

A Ação Popular se originou no direito romano, ao “se atribuir ao povo, ou a parcela dele, legitimidade para pleitear, por qualquer de seus membros, a tutela jurisdicional de interesse que não lhe pertence uti singuli, mas à coletividade”[1] e assim, foi recebida “desde a Constituição de 1946”[2], embora houvesse controvérsia — também na vigência das Cartas Magnas de 1967/9 —, quanto à expressão de “patrimônio público”[3].

A Constituição Federal (CF) de 1988 alterou esse quadro ao conferir maior ênfase aos meios diretos para o exercício da cidadania[4], o que acarretou a ampliação do objeto da Ação Popular, pois embora mantida a defesa do erário — expressamente estendida a qualquer entidade de que o Estado participe —, essa passa a abarcar os elementos culturais e históricos do patrimônio público[5], mas também ao meio-ambiente — bem de uso comum do povo —, daí a influência dos princípios republicano e da soberania popular[6], sem prejuízo à sua faceta instrumental — essa orientada ao controle judicial dos atos administrativos[7] —, no duplo aspecto preventivo e repressivo[8], para que evite ou, então, sejam ressarcidos os danos patrimoniais[9] e, finalmente, para que observada à moralidade administrativa[10] — diretriz que tem no governo honesto atributo indispensável[11] —, daí porque imbricada com a defesa dos interesses difusos[12].

Tais parâmetros devem ser considerados na análise dos requisitos da Ação Popular[13], cujos contornos se encontram no art. 5º, LXXIII da CF, sem prejuízo, todavia, dos demais valores constantes do caput desse dispositivo, depois desdobrados nos seus incisos e parágrafos — em especial no seu parágrafo 2º[14] —, e, mesmo, com outros princípios e normas magnos e, dentre eles, o da legalidade, cuja tessitura, todavia, não mais se contém numa visão meramente formal, face à influência da moralidade administrativa, inclusive como parâmetro para o reconhecimento do Estado de Direito Democrático.

Assim, com base na interpretação sistemática[15], não existe maior dificuldade em admitir que a Ação Popular possa assumir um enfoque tributário, o que, porém, só se justifica como um “corte metodológico”, sem desprezo à unidade do Ordenamento Jurídico [16], daí porque face à supremacia da Constituição[17], os conceitos magnos submetem quaisquer definições legais[18] e, dentre elas, aquelas constantes Lei da Ação Popular (LAP).

De qualquer sorte, observadas as ficções e/ou presunções[19] aplicáveis ao assunto — aquelas constantes dos arts. 2º e 4º da LAP —, se percebe que essas se mostram ajustadas ao princípio que veda o enriquecimento sem causa — também pertinente ao regime jurídico administrativo[20] —, pois expressam a presença dos requisitos da ilegalidade e lesividade, daí porque autorizadas a emprestar efeitos exacionais à Ação Popular[21], nos casos de anistia concedida com afronta à isonomia[22] ou isenção com desrespeito à legalidade — porquê veiculada por decreto[23] —, o que evidencia a ausência do indispensável pressuposto de direito[24] ou, então, propriedades antiexacionais — faceta que a aproxima mais de uma garantia individual do cidadão —, quando manejada para anular ato destinado a obrigar “ao recolhimento de tributos indevidos”[25] ou, ainda, em face de instrução normativa, que, em ofensa à lei[26], obsta à compensação, ao invés de cumpri-la[27], em acinte aos limites da competência[28] e, mesmo, ao motivo invocado para sua prática[29], o que caracteriza desvio de finalidade.

A despeito disso, segundo o Parecer PGFN/ CRJ 1087/2004 seria possível à anulação de decisões administrativas irreformáveis por razões de legalidade, juridicidade e erro de fato, face à inaplicabilidade da garantia da coisa julgada — e, mesmo, do controle de constitucionalidade no âmbito interno da Administração —, o que, segundo se afirma, não traria prejuízo ao direito de petição e ao contraditório[30].

Tal debate, todavia, volta à tona face ao ajuizamento de ações populares contra o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf)[31], para contrastar a interpretação por aquele conferida em determinados casos concretos[32], o que, entretanto, esbarra na premissa de que “o direito de ação não é incondicionado, como é o direito constitucional de petição”[33], daí porque indispensável à legitimidade de parte[34] e o interesse de agir na modalidade de adequação[35], pois, a ação popular não pode ser afastada da cidadania, dos “ideais da democracia participativa”[36], mas também da satisfação de interesses difusos ou primários, que não se confundem com os interesses meramente arrecadatórios e/ou, secundários, somente válidos quando coincidentes com aqueles primeiros[37].

Destarte, o assunto há que ser devidamente ponderado, a começar pelo lançamento, normalmente encartado junto às competências vinculadas[38] – para as quais inexistiria “apreciação subjetiva alguma”[39] –, bem como para os atos emanados dos Tribunais Administrativos – aqui já cientes quanto à inexistência de atos plenamente vinculados ou completamente discricionários[40] –, mas também que findo o procedimento e iniciado o processo administrativo[41], incide, inexorável a ampla defesa[42] e o correlato dever de observância de todos os pontos do contraditório, inclusive quanto à justiça e validade[43] do pressuposto de direito, o que, por si só, afasta a figura da revogação – alheia a tal objeto[44] –, mas não a ideia de discricionariedade – desde que respeitado o Ordenamento Jurídico[45] –, o que, porém, não pode ser reduzido a um mero juízo de oportunidade e conveniência da Administração[46] e, finalmente, que a invalidação – forma de extinção determinada pela observância do princípio da legalidade[47] –, expresse atributos tão vinculados a ponto de impedir interpretações diversas por parte dos julgadores[48], o que se admitido seria inconstitucional[49], porque importaria em ofensa não apenas aos plano de justiça e validade, mas também o da eficácia[50], pois obstaculizado o exercício da competência – exercida através de composição paritária, aliás –, dos Tribunais Administrativos.

A questão, pois, parece mais diretamente ligada aos atributos da legalidade, cuja compreensão, porém, não pode ser afastada dos demais princípios a ela aplicáveis e, dentre eles, os da soberania popular e da cidadania[51] — esse último, a um só tempo, fundamento e requisito da Ação Popular —, mas também dos cânones da lealdade e da boa-fé[52], o que, por si só, repele o dolo[53] mas não impede a observância dos critérios ético-jurídicos do ato administrativo[54], esses influenciados pela moralidade administrativa, valor que representa uma conquista histórica no controle do desvio de poder[55] ou, mesmo, um importante traço distintivo entre o Estado de Direito e o Estado de Direito Democrático[56], sem que isso, necessariamente, implique em indevida intromissão nos aspectos de conveniência e oportunidade e, pois, prejuízo à separação de poderes[57], o que, aliás, sugere um paralelo entre a ilegalidade-lesividade-requisitos e a validade-justiça-critérios e, pois, que a justiça-critério traduz um conceito constitucional determinado, não relacionado à moral comum, mas a moralidade jurídica[58], à ética do ordenamento, daí porque sua ofensa traduz tanto ilegalidade, quanto lesivividade.

Dito de outro modo, diferencia-se a situação na qual o “conteúdo, sentido e alcance da norma jurídica”[59] seja determinado e, assim, constatada sua ofensa, cabível a Ação Popular; daquelas outras para as quais se faz necessário “interpretar o conceito e [...] trazê-lo à zona de certeza”[60] e, pois, presente a dialética jurídica — aqui evidenciada pelas visões diversas, quando não antagônicas, do fenômeno tributário[61] —, o que se afigura mais sensível diante da controvérsia acerca da constitucionalidade, o que não “significa, porém, que um ato que viole a Constituição não possa ser objeto de [...] Ação Popular”[62] — inclusive face ao quanto decidido na via de exceção pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal[63], sem prejuízo ao controle concentrado[64] —, o que, em linha de coerência, afasta a exegese exclusivista — porque danosa a interesses legítimos, conquanto opostos —, e, assim, prestigia os parâmetros veiculados pelo ordenamento — o que se revela útil à segurança jurídica —, através da compreensão da legalidade pelos princípios da razoabilidade e proporcionalidade[65], bem como da soberania popular e da cidadania — essa face à boa-fé objetiva, exercida mediante a observância dos direitos e deveres correlatos —, mas também pela moralidade administrativa vista sob o viés dos critérios de justiça, validade e eficácia do sistema e, pois, fator indispensável à construção — e, mesmo, à evolução —, do Estado de Direito Democrático brasileiro.

Posto isso, conclui-se que a Ação Popular Tributária é direito-garantia constitucional fundado nos princípios republicano e da soberania popular e, pois, instrumento processual destinado ao exercício direto da cidadania — de caráter individual —, embora voltado à defesa de interesses difusos — sob acepção dos interesses primários —, para a anulação de atos que em ofensa à legalidade, porque ausente ou desprezado pressuposto de direito correspondente, causem prejuízo ao erário — princípio da indisponibilidade dos bens públicos —, ou, então, que face à afronta aos princípios e normas do Sistema Constitucional Tributário — sem prejuízo ao controle de constitucionalidade —, implique em desrespeito ao princípio que veda o enriquecimento sem causa, ou, ainda, em menosprezo à moralidade administrativa, cujos aspectos éticos jurídicos devem ser observados no âmbito das relações jurídico tributárias.

[1] SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à constituição. 8. ed., São Paulo: Malheiros, 2012, p. 173.

[2] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 14. ed., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 805.

[3] MEIRELLES, Hely Lopes. Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção, “habeas data”, ação direta de inconstitucionalidade, ação declaratória de constitucionalidade, e arguição de preceito fundamental. 25. ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 122.

[4] GASPARINI, Diogenes. Direito administrativo. 17. ed., São Paulo: Saraiva, 2012, p. 1069.

[5] FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Curso de direito administrativo. 6. ed., São Paulo: Malheiros, 2003, p. 413.

[6] MORAES, Alexandre. Direito constitucional. 21. ed., São Paulo: Atlas, 2007, p. 171.

[7] GASPARINI, Diogenes. Op. cit., p. 1059.

[8] MORAES, Alexandre de. Op. cit., p. 171.

[9] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., p. 805.

[10] SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 175.

[11] MEIRELLES, Hely Lopes. Op. cit., p. 131.

[12] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ação popular. 4. ed., São Paulo: RT, 2001, p. 37.

[13] MEIRELLES, Hely Lopes. Op. cit., p. 124-5.

[14] UELZE, Hugo Barroso. Ação popular tributária. Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados, São Paulo, n. 136, p. 66, maio de 1995.

[15] CARVALHO, Paulo de Barroso. Curso de direito tributário. 21. ed., São Paulo: Saraiva, 2009, p. 95-9.

[16] SANTI, Eurico Marcos Diniz de. 3. ed., São Paulo: Saraiva, 2010, p. 25-6.

[17] MORAES, Alexandre de. Op. cit., p. 676.

[18] ATALIBA, Geraldo. Hipótese de incidência tributária. 6. ed., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 32.

[19] CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 29. ed., São Paulo: Malheiros, 2013, p. 532-7.

[20] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. O princípio do enriquecimento sem causa em direito administrativo. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n. 5, fev./mar./abr. de 2006. Disponível em: <http: www.direitodoestado.com.br>.

[21] MARINS, James. Direito processual tributário brasileiro. 4. ed., São Paulo: Dialética, p. 403-5.

[22] Idem, ibidem, p. 593.

[23] CARRAZZA, Roque Antonio. Op. cit., p. 1002-3.

[24] GASPARINI, Diogenes, Op. cit., p. 116-7.

[25] MARINS, James. Op. cit., p. 592.

[26] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso..., p. 86.

[27] UELZE, Hugo Barroso. Op. cit., p. 78-81.

[28] FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Op. cit., p. 183.

[29] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 27. ed., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 149-150.

[30] MIGUEL, Luciano Costa. A possibilidade de invalidação judicial das decisões finais do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), quando favoráveis ao contribuinte. Jus Navigandi, Teresina, ano 16, n. 2753, 14 jan. 2011 . Disponível em:

[31] CANÁRIO, Pedro. Carf para atividades devido a ações populares. Revista Consultor Jurídico, 5 fev. 2013, Disponível em:

[32] Scocuglia, Livia. Mais nove ações populares contra o Carf caem na Justiça. Revista Consultor Jurídico, 25 fev. 2013, Disponível em: < http://www.conjur.com.br/2013-fev-25/nove-sentencas-sao-favoraveis-decisoes-carf-acoes-populares#autores>.

[33] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit., p. 123.

[34] THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de direito processual civil. 45. ed., Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 67.

[35] MARINS, James. Op. cit., p. 590-1.

[36] MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 7. ed., São Paulo: RT, 2013, p. 461-2.

[37] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., p. 76.

[38] SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Op. cit., p. 125-6.

[39] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., p. 380.

[40] FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Op. cit., p. 197.

[41] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., p. 430.

[42] GASPARINI, Diogenes, Op. cit., p. 163 e 188.

[43] BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. 5. ed., São Paulo: Edipro, 2002, p. 48-9.

[44] MEIRELLES, Hely Lopes. Op. cit., p. 195.

[45] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., p. 382.

[46] GASPARINI, Diogenes, Op. cit., p. 163.

[47] FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Op. cit., p. 233 e 259.

[48] MEIRELLES, Hely Lopes. Op. cit., p. 641.

[49] CARRAZZA, Roque Antonio. Op. cit., p. 1045.

[50] BOBBIO, Norberto. Op. cit., p. 49.

[51] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Op. cit., p. 83.

[52] GASPARINI, Op. cit., p. 64.

[53] CRISTO, Alessandro. Processo contra membro do Carf deve provar dolo. Revista Consultor Jurídico, 21 jun. 2013, Disponível em:

[54] MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Op. cit., p. 102.

[55] MEIRELLES, Hely. Mandado..., p. 127-8.

[56] SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 25-26.

[57] MEIRELLES. Mandado..., p. 128.

[58] SILVA, José Afonso da. Op. cit., p. 175.

[59] CARVALHO, Paulo de Barros. Op. cit., p. 97-8.

[60] FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Op. cit., p. 205.

[61] UELZE, Hugo Barroso. Op. cit., p. 60-61.

[62] MEIRELLES, Mandado..., p. 156.

[63] UELZE, Hugo Barroso. Op. cit., p. 84-92.

[64] MEIRELLES, Mandado..., p. 154-5.

[65] FIGUEIREDO, Lúcia Valle. Op. cit., p. 206.

por Hugo Barroso Uelze é advogado, secretário adjunto da 116ª Subseção da OAB-SP e coordenador do Núcleo Jabaquara da Escola Superior de Advocacia da OAB-SP.

Fonte: Conjur

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