terça-feira, 20 de dezembro de 2016

O caso Guga, a boa-fé e o Carf

Muito se noticiou da visita feita pelo Gustavo Kuerten, o famoso Guga, ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, o paritário Carf. Agora, as atenções se voltam para a decisão proferida pelo Carf em sessão do dia 23 de novembro.

Em sua visita ao Carf, em 25 de outubro, Guga foi defender-se contra o entendimento do Fisco de que ele não poderia ter criado uma pessoa jurídica para explorar os seus direitos de imagem/marca durante o período de 1999 a 2002.

Segundo o Fisco, Guga deveria ter reconhecido os rendimentos de imagem na própria pessoa física para fins de tributação, pois não haveria "plausibilidade jurídica em defender a regularidade da constituição de empresa de prestação de serviço, detentora de um único ativo vinculado à imagem de um tenista profissional, quando a empresa centra-se unicamente na figura do tenista".

Esse tipo de decisão traz uma sensação de injustiça, que pode inclusive levar atletas e artistas a se mudarem do país

A posição do Fisco acabou sendo chancelada pelo Carf, a exemplo de casos similares envolvendo outras personalidades artísticas e esportivas. Porém, tal julgamento leva à conclusão, a partir de uma interpretação a contrário senso, que (i) o contribuinte deve se organizar da forma que melhor entender o Fisco e não conforme sua liberdade para conduzir negócios (livre iniciativa) e (ii) só seria aceito um planejamento tributário às avessas, que leve ao caminho mais oneroso do ponto de vista fiscal.

Além disso, essa decisão ataca a própria função e essência da pessoa jurídica, que nada mais é do que um destacamento fictício da personalidade da pessoa física, cujo uso é incentivado pela própria legislação. Por isso, é um equívoco dizer que o Guga não poderia ter organizado seus negócios por meio de pessoa jurídica. Alegar que o licenciamento de marca é personalíssimo como razão para a proibição de utilização de pessoa jurídica seria o mesmo que dizer que um médico não poderia prestar serviços em sociedade, por intermédio de pessoa jurídica.

A impressão que se tem é que se não existisse lucro presumido e a empresa de Guga tivesse apurado os tributos pela sistemática de lucro real, com uma carga tributária provavelmente maior do que aquela que seria suportado pela pessoa física, jamais teria havido o questionamento por parte do Fisco.

Ora, os limites na desconsideração de uma estrutura como a do Guga devem decorrer da interpretação da lei (sem aplicação de fundamentos meramente econômicos) e da presunção de boa-fé do contribuinte, já que é totalmente compreensível que uma pessoa física constitua uma pessoa jurídica para explorar determinada atividade que, pela sua complexidade, exige organização e profissionalismo. Toda grande empresa começou um dia pequena, com um único ativo, e depois foi se sofisticando, sofisticação essa que somente foi possível por conta da utilização da ficção "pessoa jurídica".

Dito de outro modo, não havendo proibição legal, deve ser aplicado ao caso ao princípio da livre iniciativa, cabendo ao contribuinte organizar os seus negócios da forma como bem entender.

O artigo 87-A da Lei nº 9.615, de 1998, com a redação conferida pela Lei nº 12.395, de 2011 (lei posterior ao período do auto de infração do Guga), trata especificamente da possibilidade de o direito ao uso da imagem do atleta ser cedido ou explorado por terceiros, ou seja, explorado por uma pessoa jurídica. Em nossa opinião, esse novo artigo sequer era necessário, mas tornou o óbvio ainda mais óbvio e deveria ser visto como interpretativo, no sentido de que o direito de imagem poderia ser explorado por meio de uma pessoa jurídica mesmo que seja uma pessoa jurídica do próprio atleta – que algum dia, saliente-se, terá sua titularidade transferida necessariamente a terceiro devido ao inevitável falecimento do atleta, quando a exploração da imagem continuará, mas apenas abrangendo imagens do passado.

Apesar de todos esses argumentos, a decisão do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais foi contrária a Guga. E são contundentes as dúvidas de que essa sanha arrecadatória traga a longo prazo efetivo aumento de tributação no Brasil, pois esse tipo de decisão traz uma sensação de injustiça, que pode inclusive levar atletas profissionais e artistas a se mudarem do país.

por Juan Manuel Calonge Mendez é advogado em São Paulo

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

Fonte : Valor

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