quarta-feira, 8 de novembro de 2017

Novo capítulo de uma longa história tributária

Mais um capítulo de uma extensa novela foi divulgado e, novamente, aguardamos, nós contribuintes, os próximos acontecimentos: foram finalmente apresentados os Embargos de Declaração da União contra a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que, em sede de repercussão geral, considerou inconstitucional a inclusão do ICMS na base de cálculo da Contribuição ao PIS e da Contribuição sobre o Financiamento da Seguridade Social (COFINS).

Oportuno relembrarmos alguns fatos que envolvem essa questão: o STF demorou quase 20 anos para se manifestar definitivamente sobre o tema, o que somente ocorreu no dia 15 de março de 2017; antes desse julgamento o STF já havia se manifestado favoravelmente aos contribuintes em 2009 e 2014, o que nos permitia antever qual seria seu posicionamento; os impactos da decisão são extremamente expressivos; e, finalmente, a União resistirá firmemente em acatar esse entendimento, o que é visível pelos argumentos deduzidos nos Embargos de Declaração e, em especial, pelo pedido de modulação de efeitos da decisão para prazo futuro e incerto (julgamento dos Embargos).

Sem querer entrar em outras questões levantadas no recurso, nos salta aos olhos a veemência com que a União pretende convencer os julgadores de que, mais do que uma decisão no seu entender equivocada, estaríamos diante de uma verdadeira “bomba relógio”, a explodir a qualquer momento, e que traria danos permanentes às contas públicas, elevaria a inflação às alturas, colocaria em risco a Seguridade Social e, o que é pior, beneficiaria alguns poucos contribuintes, justamente aqueles que deveriam arcar com a conta mais alta dos tributos.

A intenção da União, nessa altura dos acontecimentos, não nos parece seja reverter o que já foi decidido, mediante a alteração do julgamento; essa pretensão certamente ficou para trás. O que nos parece é que pretende embaralhar o quanto possível as cartas e postergar ao máximo os efeitos de decisão que, a bem da verdade, já deveria ser ocorrido décadas atrás. E faz isso utilizando frases de efeito, misturando conceitos jurídicos, argumentos econômicos e apelos emocionados, sem, contudo, convencer.

A intenção da União, nessa altura dos acontecimentos, não nos parece seja reverter o que já foi decidido, essa pretensão certamente ficou para trás. O que nos parece é que pretende embaralhar o quanto possível as cartas e postergar ao máximo os efeitos de decisão que, a bem da verdade, já deveria ser ocorrido décadas atrás. E faz isso utilizando frases de efeito, misturando conceitos jurídicos, argumentos econômicos e apelos emocionados, sem, contudo, convencer.

Pretende-se a modulação de efeitos da decisão para o momento em que os Embargos de Declaração forem decididos. Em outras palavras, querem que a decisão tenha efetividade em um, dois ou (muito) mais anos, a depender da disponibilidade do STF de, dentre os vários assuntos que necessitam de encerramento, confirmar e formalizar decisão final de uma discussão quase eterna.

Tentemos analisar os argumentos da União sob a perspectiva eminentemente jurídica, ainda que esse se mostre um enorme desafio. A legislação estabelece que, “ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado”. Eis o fundamento legal para o pedido de modulação formulado pela União.

Cabe-lhe, então, a tarefa de demonstrar que, no caso, existiriam razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, e é justamente aí que entram as elucubrações, dificilmente sustentáveis. Vejamos.

A União inicia o recurso trazendo intepretação equivocada de fatos muito claros. Alega que a decisão do STF “rompe com o entendimento histórico dos nossos Tribunais, em que pese o RE nº 240.785”. Ora, a decisão do STF de março de 2017 só fez confirmar entendimento do próprio STF, de 2014, que, ao julgar recurso de um contribuinte específico, concluiu que o ICMS não deveria compor a base de cálculo dos PIS/COFINS.

E a decisão de 2014, por sua vez, só fez confirmar entendimento da maioria do STF manifestado em 2009, quando 6 (seis), de um total de 11 (onze) Ministros, votaram exatamente no mesmo sentido e o processo em questão só não foi finalizado por um pedido de vista do Ministro Gilmar Mendes, cujo voto não teria condições de influenciar o resultado do julgamento – porque a maioria já estava formada – e que só foi levado aos autos anos depois.

Portanto, a modulação não se justifica por alteração de “entendimento histórico”. Ao contrário, o real “entendimento histórico”  foi confirmado e mantido pela decisão de março de 2017.

Prossegue a União afirmando que a decisão “tem potencial de contágio sobre outras exações – da União e dos demais entes e promove profundas alterações no sistema jurídico tributário”. E vai além, citando o “enorme impacto orçamentário das restituições promovidas pela presente tese e por outras decorrentes da aplicação análoga dos argumentos em questão”, numa tentativa de demonstrar o “excepcional interesse social” e, em consequência, a necessidade de modulação de efeitos.

Ora, se o impacto da “tese” é dessa magnitude – e, de fato, acreditamos que seja – isso só comprova que exigências inconstitucionais às quais nos submetemos no País tiveram e têm impacto muito maior do que aquele que inicialmente se verifica. Se o entendimento do STF poderá levar questionamentos em relação a outros tributos, isso só demonstra que outros tributos estão sendo afetados – e alargados – porque em suas respectivas bases de cálculo estão sendo incluídos valores estranhos à sua materialidade.

O efeito cascata tão temido pela União é o reflexo, a prova, a demonstração cabal do caos fiscal em que vivemos, onde, se não bastassem as inúmeras exigências, elas são opostas ao contribuinte ao arrepio da Constituição e onerando ainda mais fortemente a produção, o consumo e, ao final do dia, o cidadão comum.

Justamente para tentar inverter essa lógica – quem paga a conta, ao final do dia, é aquele que consome bens e serviços – a União sugere, em seus Embargos, que a decisão beneficiará “os maiores contribuintes do ICMS”, possibilitando restituições que “implicarão em vultosas transferências” – no seu entender injustas – “de riquezas dentro da sociedade”.

Chega inclusive a afirmar – sem, contudo, comprovar – que os maiores beneficiários das restituições seriam “os produtores que não arcaram, efetivamente, com o custo e o repassaram”, justamente aqueles que “não possuem incentivos para reduzir preços”.

Vemos fragilidade grande em tais argumentos. Não podemos esquecer que nos referimos a discussão que envolve os chamados PIS/COFINS, tributos devidos por todas as pessoas jurídicas e que têm por fato gerador a aferição de receitas. Por outro lado, a grandeza “estranha” na respectiva base de cálculo é justamente o ICMS, imposto que incide na circulação de mercadorias e na prestação de certos serviços, presente na tributação da grande maioria de bens e serviços do País.

Com isso, podemos dizer que pouquíssimos serão os segmentos que nenhum interesse têm na discussão em questão ou que não sofreram (e ainda não sofrem), ao longo das últimas décadas, com exigência ilegal e inconstitucional. Não há como demonstrar que se está diante de discussão seletiva, elitizada, que beneficiaria poucos em detrimento de muitos. Todos os que consomem bens e serviços no País foram injustamente onerados ao longo dos últimos anos e serão beneficiários da restituição que a União certamente estará obrigada a fazer. Tão simples quanto isso.

Mas não é só. Em uma economia vivenciando índices de crescimento pífios, com vendas encolhendo, postos de trabalho sendo fechados e empresas nacionais perdendo competividade dentro e fora do País, não há lógica, para dizer o mínimo, em se imaginar que a recuperação de tributos por parte das empresas não se refletiria nos preços, nos investimentos, nos empregos, enfim, que não seria canalizada para própria atividade produtiva, tão penalizada ultimamente.

Os Embargos prosseguem trazendo aquelas que, no entender da União, seriam suas alternativas, quais sejam: o aumento de tributos, o endividamento ou a inércia, o que levaria à necessidade de emissão de moeda e consequente aumento de inflação. Concluem que, entre todos, o único caminho viável seria o endividamento do Estado.

A dívida da União só adquiriu essa magnitude porque, na qualidade de gestores das finanças públicas e entes competentes para a instituição e arrecadação de tributos, não atenderam a orientação do STF sobre a matéria que data de quase 10 anos. Tivesse a União alterado seu procedimento, deixado de exigir a inclusão do ICMS na base de cálculo dos PIS/COFINS quando o STF emitiu o primeiro sinal (negativo) sobre o tema, não estaria diante de tais montantes passíveis de devolução e nem sequer estaria discutindo o tema.

Creditar a responsabilidade pela sua irresponsabilidade aos contribuintes e ao próprio STF, usar o argumento do caos ou oportunizar os percalços da Seguridade Social, tudo para justificar a postergação por ainda mais tempo do pagamento de uma conta – que, como se esperava, um dia chagaria – é inaceitável. Esperamos que o STF também entenda dessa forma.

Nada justifica a modulação de efeitos da decisão prolatada pelo STF no âmbito da repercussão geral, que contempla a exclusão do ICMS da base de cálculo dos PIS/COFINS. Ao contrário, a segurança jurídica, a boa fé e até mesmo o bem senso clamam para que os efeitos da decisão sejam aplicados de imediato, sem qualquer postergação.

por Glaucia Lauletta Frascino – Sócia o escritório Mattos Filho

Os artigos publicados pelo JOTA não refletem necessariamente a opinião do site. Os textos buscam estimular o debate sobre temas importantes para o País, sempre prestigiando a pluralidade de ideias.

Fonte Oficial: Jota

Nenhum comentário:

Postar um comentário