O ajuste fiscal promovido pelo governo Dilma já não é mais novidade. A cada dia, noticia-se uma nova medida: aumenta-se um tributo aqui, reduz-se uma despesa ali, com vistas a atingir a meta de 1,2% de superávit primário. Dentre essas diversas providências – que não pouparam sequer os investimentos -, surge o debate sobre o veto presidencial à correção da tabela do Imposto de Renda das Pessoas Físicas.
A Lei 13.097, de 2015, previa um reajuste de 6,5% nas faixas de tributação, o que foi vetado por Dilma. Como justificativa aponta-se ofensa à Lei de Responsabilidade Fiscal: o reajuste na tabela do IR resultaria em R$ 7 bilhões de renúncia fiscal, sem que tenha havido a "devida estimativa do impacto orçamentário-financeiro", em suposta violação ao artigo 14 da norma.
Do ponto de vista das contas públicas, a postura de Dilma é compreensível: as ordens do dia são o corte de gastos e o aumento de receitas. Não faria sentido, justamente agora, em um cenário de contenção, autorizar a correção da tabela do IR que, inevitavelmente, resultaria em perda de arrecadação. A questão, porém, é saber se o veto se sustenta juridicamente. O ponto central da presidente está na ofensa ao artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Esse dispositivo disciplina a figura da "renúncia de receita". Trata-se do seguinte: no exercício da competência tributária, os entes da Federação são livres para conceder benefícios fiscais que resultem em menor arrecadação.
É sabido que a simples atualização monetária da base de cálculo de tributo não representa majoração
Contudo, como tais medidas afetam diretamente as contas públicas, a Lei de Responsabilidade Fiscal exige que algumas precauções sejam tomadas e o cálculo da estimativa do impacto que tal redução terá no orçamento é uma delas. Segundo o veto, essa providência não teria sido observada, inviabilizando a aprovação da correção da tabela.
O artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal é um instrumento importante de equilíbrio das contas públicas e, de fato, não deve ser ignorado. O que de outro lado não significa que seja ele um pretexto para se vetar mudanças legislativas que impactem negativamente a arrecadação. Explico melhor: o dispositivo tem sua aplicação limitada aos casos de renúncia de receita e, assim, às situações em que, segundo o estabelecido no parágrafo 1º, estejam configuradas anistia, remissão, isenção, alteração de alíquota ou modificação de base de cálculo, que impliquem "redução discriminada de tributos ou contribuições, e outros benefícios que correspondam a tratamento diferenciado". A pergunta relevante aqui é: a correção da tabela do IR deve ser entendida como hipótese de renúncia de receita, nos estritos termos da definição da lei? A resposta só pode ser negativa.
Ainda que haja, pela correção, alteração da base de cálculo do imposto de renda e ampliação da faixa de isenção, tal se deve à adequação daqueles valores à perda do valor da moeda decorrente da inflação verificada em 2014. O reajuste proposto e aprovado pelo Congresso é de 6,5% e o índice oficial de inflação para 2014 ficou em 6,56%. Nada mais justo, portanto, que atualizar as faixas do Imposto de Renda, garantindo à população a manutenção da tributação sobre o valor real de seus rendimentos. É sabido que a simples atualização monetária da base de cálculo de tributo não representa majoração; tal determinação está na redação artigo 97, § 2º do Código Tributário Nacional. Ora, o inverso deve ser verdadeiro: a correção da base de cálculo do Imposto de Renda não pode representar modalidade de renúncia de receita, ainda que tal represente perda de arrecadação para o governo. Apenas isso não basta para invocar a aplicação do artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal. A justificativa é vazia e padece de precisão jurídica. Não é demais recordar que essa não é a primeira ocasião em que a presidente veta um dispositivo legal com fundamento indevido no artigo 14. Em meados de 2012, a tentativa dos parlamentares de extinguir a famigerada contribuição da Lei Complementar nº 110/2001 foi igualmente contida diante da alegada e descabida ofensa a esse dispositivo.
Por motivos outros, o próprio PT articula a derrubada do frágil veto da presidente à correção da tabela do IR. Não se trata, porém, de mera celeuma política. A interlocução entre temas de direito tributário e direito financeiro é demasiadamente evidente para que fiquemos alheios a esse debate. A compreensão jurídica do fenômeno da tributação descolado de sua função precípua – destinar recursos aos cofres públicos – empobrece o debate e priva-nos de combater abusos argumentativos relacionados à Lei de Responsabilidade Fiscal. É passada a hora de o discurso tributário assumir sua vocação e conectar-se com os temas relacionados à queda ou ao aumento de arrecadação e, assim, à compreensão mesma da política fiscal implementada pelo governo. Porque afinal, ainda que o ajuste seja dolorosamente necessário, ele deve ser conduzido nos limites do direito.
por Tathiane Piscitelli é professora da FGV Direito SP, doutora em direito pela USP, coordenadora do Núcleo de direito tributário aplicado e desenvolvimento do mestrado profissional da FGV Direito SP
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Fonte: Valor
Via Alfonsin
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