segunda-feira, 17 de julho de 2017

A insegurança jurídica justifica a imunidade tributária

“O sinal mais evidente da vitalidade de um pensador é a mudança de opiniões.”
(Sérgio Buarque de Holanda)

Não há a menor dúvida sobre ser este o melhor país do mundo! Isso explica porque sobrevivemos a um sistema jurídico onde até o passado é imprevisível. Se nossas leis são interpretadas conforme o balanço das brisas ou o rumor das ruas, a jurisprudência assinala que a presunção de inocência pode não ser tão presumida quanto parece.

A Constituição cada vez mais se assemelha ao livrinho que Ulisses (o Guimarães, não o herói grego) exibiu com bravura há quase 30 anos, ao assegurar que todo o poder emana do povo. Essa afirmativa hoje pode ser utilizada por quem queira desdenhar do Judiciário, como se um pais continental pudesse resolver seus problemas na rua, com qualquer aglomerado de pessoas.

Por tudo isso e mais alguma coisa, vemo-nos na obrigação de rever posicionamento sobre a questão da imunidade tributária. O que vimos durante um bom tempo como benefício capaz de gerar fraudes pode e deve ser encarado como proteção contra a fúria arrecadadora que inviabiliza, limita ou prejudica atividades legítimas.

O artigo 150, inciso VI da Constituição proíbe a cobrança de impostos sobre templos, partidos políticos, entidades sindicais de trabalhadores, instituições de educação e de assistência social sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei, bem como os livros, jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão.

Os parágrafos 2º a 4º do mesmo artigo 150 fixam regras que permitem à autoridade fiscal manter a imunidade no limite da legalidade. Quando e se houver abusos, a entidade beneficiada pela imunidade por eles responde.

Tem se noticiado abusos em relação a dirigentes de determinas igrejas. Um deles foi considerado o pastor mais rico do Brasil, enquanto outro seria, conforme uma revista de negócios, possuidor de milhões de dólares.

A riqueza de igrejas ou seus representantes não é novidade na história da humanidade. Seu poder político deve ser considerado legítimo, pois nada impede que o fiel siga a orientação da pessoa em quem confia. Quando existe distorção nesse relacionamento, a origem está na falta de educação ou, pior ainda, quando o eleitor sequer é alfabetizado. Nessa situação, a culpa cabe ao poder público, que não atende as normas do artigo 6º da Constituição e, pior ainda, admite voto de analfabeto, quando deveria alfabetizá-lo.

Parece-nos, contudo, que falta ao poder tributante (União, estados e municípios) o cumprimento de seu dever, aquele apontado nos parágrafos 3º e 4º do artigo 150:

“§ 3º As vedações do inciso VI, "a", e do parágrafo anterior não se aplicam ao patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel.

§ 4º As vedações expressas no inciso VI, alíneas "b" e "c", compreendem somente o patrimônio, a renda e os serviços, relacionados com as finalidades essenciais das entidades nelas mencionadas”.

O texto constitucional ordena que seja recolhido o imposto, por exemplo, se houver cobrança de estacionamento anexo ao templo. Determina, ainda, que a mesma cobrança incida sobre bens estranhos às finalidades essenciais. Exemplos: veículos, aeronaves etc.

De qualquer forma, uma entidade que se pretenda séria deve prestar contas de suas finanças. A Mitra Arquidiocesana de São Paulo (CNPJ 63.089.825/0001-44) publica suas demonstrações financeiras no jornal O São Paulo, fundado há mais de 60 anos. A peça contábil é minuciosa, com notas explicativas das variações patrimoniais e tudo o que se exige para fins de auditoria e fiscalização tributária.

Provavelmente as demais instituições religiosas agem de forma parecida para que sejam atendidos os requisitos da lei. Caso assim não procedam, ocorre falha nos serviços públicos, especialmente na Receita Federal.

Com relação aos partidos políticos, entidades sindicais ou instituições de educação e assistência social, justifica-se a imunidade pelos serviços que prestam. Mas isso não as isenta de fiscalização. Afinal, a norma da Lei Maior determina que sejam atendidos os requisitos da lei.

As entidades de assistência social muitas vezes prestam serviços relevantes que o poder público não consegue realizar com eficiência. Um exemplo bem conhecido é o Hospital do Câncer de Barretos, que, embora atenda apenas pelo SUS, tornou-se referência internacional de qualidade em sua área. Não se pode ignorar o que é público e notório.

Também há instituições privadas de elevado padrão, especialmente no atendimento de pessoas com necessidades especiais. Muitas entidades pouco conhecidas fazem um bom trabalho, graças à dedicação de seus dirigentes e mantenedores. Portanto, nem tudo está ruim no país.

A imunidade sobre livros, jornais, periódicos e o papel de sua impressão também é algo a preservar. Num país onde a cultura precisa se desenvolver, tributar ainda mais essas mercadorias não é necessário nem inteligente. Tais bens já sofrem a incidência de tributos no transporte, no uso intensivo de mão de obra e em diversos componentes indiretos (embalagens por exemplo) e usam atividades tributadas (direitos autorais e conexos, publicidade etc). A arrecadação brasileira pode dispensar tal imposto que é compensado largamente pela disseminação da própria cultura.

Se houver fraude no uso da imunidade, seja nos livros, ou através das pessoas jurídicas de direito privado, igrejas, associações, sindicatos, institutos, fundações, faculdades ou arapucas das mais sofisticadas denominações, os agentes do Fisco certamente conseguirão alcançar tais meliantes e fazer com que obedeçam à lei. Os auditores fiscais são profissionais de alto nível e muito bem treinados.

Parece pouco provável que servidores públicos se disponham a ignorar o artigo 319 do Código Penal ou mesmo o Decreto 1.171, que estabelece o Código de Ética do Servidor Público Federal e determina:

“I - A dignidade, o decoro, o zelo, a eficácia e a consciência dos princípios morais são primados maiores que devem nortear o servidor público, seja no exercício do cargo ou função, ou fora dele, já que refletirá o exercício da vocação do próprio poder estatal. Seus atos, comportamentos e atitudes serão direcionados para a preservação da honra e da tradição dos serviços públicos”.

Com a carga tributária que temos (perto de 40% do PIB), não é necessário acabar com imunidades, desde que atendidos os requisitos da lei. Mas, quando abusos de algumas pessoas se tornam públicos, vergonhosos, indecentes mesmo e essas pessoas dizem que são religiosos, ostentam enorme poderio econômico e formam verdadeiros impérios, temos a impressão que não temos nada que se pareça com Justiça Tributária.

Raul Haidar é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

Fonte: Conjur

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