segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Conciliando contabilidade e direito tributário

Já se passaram, despercebidamente, quase dez anos da publicação da Lei nº 11.638/07, que internalizou no país o padrão internacional de contabilidade, denominado IFRS. A partir desse processo de harmonização, que bem valorizou o papel da ciência contábil, assim como determinou a sua independência em relação ao direito tributário, nota­-se cada vez mais a importância de se compreender estas duas áreas de forma mais autônoma, assim como de decifrar as complexas interações existentes entre elas. 

A matéria é intrincada, vasta, mas instigante, e podemos observá­-la seguidamente na excelente coluna Fio da Meada do Valor. Sendo impossível até mesmo elencar a sua potencial abrangência, enfoca­-se por ora nesses três conceitos de vital importância: faturamento, receita e receita bruta. 

Pois bem, nas relações empresariais o faturamento possui um sentido informal de fechamento de uma venda. A emissão da fatura resume o acordo negocial entre as partes; usualmente uma pessoa pagando e outra cumprindo uma obrigação de dar ou de fazer. O que se tem numa fatura é, na verdade, um simples documento comercial de controle, no qual se discrimina o objeto do negócio e em que condições, não se confundindo, embora muito comum, com a nota fiscal. 

O uso indiscriminado da fatura comercial e do faturamento como aferição de resultado ou base de cálculo pode apresentar distorções 

Mas a utilização indiscriminada da fatura comercial, e, logo, do faturamento, como aferição de resultado ou base de cálculo de tributos pode apresentar sérias distorções. Primeiro, pela inclusão dos tributos cobrados por fora, como o IPI e o ICMS substituição tributária. Segundo, por não incluir neste documento, e consequentemente no faturamento, outros ingressos menos usuais, tais como ganhos não operacionais. Terceiro, e ainda mais crítico, pela possível existência de outros valores dentro da fatura. 

Um notório exemplo deste último problema são as ditas receitas de terceiros ou repasses. São aqueles valores que se acrescentam à fatura, mas que pertencem a outros envolvidos indiretamente na transação. Trata-­se de situação bastante frequente em atividades que se dão por meio de intermediários entre consumidor e fornecedor, tais como nas agências de turismo e de propaganda e nos planos de saúde. Nestas atividades, habitualmente multilaterais, apresenta-­se na fatura valores que não pertencem, unicamente, ao emissor do documento. 

Já a definição de receita, segundo os IFRS, persegue o objetivo cobiçado pelo novo padrão contábil: oferecer informações úteis para a tomada de decisão. A Contabilidade atual, emancipada dos aspectos tributários, encontra-­se inteiramente voltada para os investidor e para o mercado. Em termos de divulgação, inclusive, impõem-se às entidades o uso de outras contas de controle interno para fins fiscais como forma de não macular, por exemplo, a demonstração de resultados do exercício. 

Nesses termos, o conceito de receita sob as prescrições dos IFRS passa a ser o efetivo ingresso de benefícios econômicos que resultem em legítimo aumento do patrimônio líquido da entidade. E é aí que se enfatiza um conceito fundamental: quantias cobradas em nome de terceiros, tais como tributos ou repasses, não são reais acréscimos econômicos que aumentam o patrimônio líquido de quem os recebe.

Entretanto, dentre aqueles que estudam o tema é sabido que o direito tributário acabou por construir, dentro do seu universo, uma definição autônoma do que seria faturamento. Isto é, para dirimir uma extensa controvérsia interpretativa relativa às contribuições sociais e o alcance do termo, findamos por encontrar uma definição juridicizada deste conceito: o de sinônimo de receita bruta decorrente da venda de mercadorias e/ou da prestação de serviços. 

E aqui se faz uma breve crítica à tese da exclusão do ICMS da base de cálculo das contribuições para o PIS/Pasep e da Cofins. Tributos indiretos incidem sobre o preço da transação e são meticulosamente calculados na formação deste, sendo o consumidor final o contribuinte de fato. Ou seja, não incidem sobre a receita depurada dos IFRS (e tampouco sobre o montante global da fatura comercial). 

Já o conceito de receita bruta, atualizado recentemente, pela Lei nº 12.973/14, está positivado no ordenamento jurídico para fins específicos de tributação. Com o objetivo de serem suprimidas interpretações diversas e os infinitos litígios que envolvem o tema, buscou­-se, através do novo marco legal, o aperfeiçoamento do seu alcance quanto verdadeiro fato jurídico­tributário, o qual abrange a essência da atividade econômica desenvolvida pelas entidades. 

Com isto, simplifica-­se sua interpretação e apuração, a qual possui extraordinária importância por servir de base de cálculo para tributos diversos, tais como o Imposto de Renda com base no lucro presumido e o Simples Nacional. 

Verifica­-se, portanto, o quão fundamental é o diálogo eficaz do direito tributário com as demais áreas correlatas, principalmente com as ciências contábeis e econômicas. A utilização, pela legislação, de conceitos chave e vocábulos com conteúdo técnico deve ser precedida de intensa reflexão e aprofundamento nos temas, caso contrário, continuaremos a aprofundar a complexidade do sistema tributário, econômico e regulatório, causando inequívocos prejuízos ao ambiente de negócios e ao desenvolvimento do país. 

por Aisha Stumpf e Diogo Cabeda são, respectivamente, ex­analista do Banco Central do Brasil e auditorfiscal da Receita Federal do Brasil 

Este artigo reflete as opiniões do autor, e não do jornal Valor Econômico. O jornal não se responsabiliza e nem pode ser responsabilizado pelas informações acima ou por prejuízos de qualquer natureza em decorrência do uso dessas informações

Fonte: Valor

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