quarta-feira, 8 de julho de 2015

08/07 Segurança Jurídica e Normas Gerais Tributárias

O tema da segurança jurídica é, ao mesmo tempo, um dos mais simples e intrincados do direito. Sua simplicidade repousa no aspecto intuitivo que a ideia fornece, no sentido de que o direito, onde é claro e delimitado, cria condições de certeza e igualdade que habilitam o cidadão a sentir-se senhor de seus próprios atos e dos atos dos outros. Seu intrincado está justamente nesta dificuldade primária do significado desse estar senhor de seus atos e dos atos alheios na medida em que os outros também devam estar senhores dos seus e dos nossos atos.

Diz-se, assim, que a segurança depende de normas capazes de garantir o chamado câmbio das expectativas. Ora, como diz Radbruch, a segurança jurídica exige positividade do direito: se não se pode fixar o que é justo, ao menos que se determine o que é o jurídico. Segurança significa a clara determinação e proteção do direito contra o não-direito, para todos. Na determinação do jurídico e, pois, na obtenção da segurança, a certeza é um elemento primordial. Por certeza entende-se a determinação permanente dos efeitos que o ordenamento jurídico atribui a um dado comportamento, de modo que o cidadão saiba ou possa saber de antemão a consequência das suas próprias ações.

Ora, esta exigência vem satisfeita ao máximo quando o legislador não abandona a regulação dos comportamentos ao ajuizamento de caso por caso pelo aplicador, mas estabelece com uma norma a regulação de uma ação-tipo, de modo que nela caibam todas as ações concretas que ela inclui. A tipificação, nesse sentido, é garantia da certeza que é base da segurança. Mas a segurança só se obtém se, além da regulação de uma ação tipo, esta valer para todos igualmente. A igualdade é um atributo da segurança que diz respeito não ao conteúdo, mas ao destinatário das normas, garantindo segurança a norma que obedece o princípio da isonomia.

Na tradição mais liberal da doutrina jurídica, o conceito de segurança, portanto, exige que as normas jurídicas sejam gerais, sem, porém, que se atente para o fato de que esta generalidade pode se referir ao conteúdo (ações-típicas, abstratas) ou ao destinatário (igualdade). Isto significa, outrossim, que a segurança é função de duas variáveis, a certeza e a igualdade, que são valores distintos, podendo ser complementares ou não. Ou seja, do fato de que unia norma se dirija a todos igualmente não decorre que seu conteúdo seja certo e vice-versa. Isto traz para a própria noção de segurança uma ambiguidade que precisa ser esclarecida.

Como hoje se reconhece, um ordenamento jurídico é composto não só de normas gerais (tanto no sentido do conteúdo quanto do destinatário), mas também de normas individuais (também nos dois sentidos). Por isso, a doutrina costuma ver o ordenamento como um sistema de normas, subordinadas umas às outras. A sistematização do ordenamento, neste sentido, é um corolário da segurança, posto que este é o modo pelo qual a pluralidade de normas individuais é trazida a uma unidade, capaz de atender as exigências da certeza e da igualdade.

A sistematização, contudo, tem duas vertentes, herdadas do jusnaturalismo da Era Moderna: uma, equivalente ao racionalismo material, subordina as normas individuais às gerais pelo seu conteúdo; outra, equivalente ao racionalismo formal, faz a subordinação pela hierarquização de competências. Para a primeira, as normas gerais são basicamente aquelas cujo conteúdo dá uniformidade ao conteúdo das normas derivadas. Para a segunda, normas gerais são aquelas que disciplinam as competências para a expedição das normas derivadas.

Em termos de segurança, esta é tanto maior, para o sistema material, quanto mais uniformemente certos forem os conteúdos; para o sistema formal, o importante é a uniforme e não conflitiva discriminação geral das competências, a fim de prevenir decisões contraditórias que valessem, desigualdade, para uns e para outros. É óbvio, no entanto, que a segurança, nos dois casos, não é necessariamente a mesma, posto que a certeza dos conteúdos sistematizados favorece mais a imposição de diretrizes centralizadas quanto ao comportamento prescrito aos cidadãos, enquanto a discriminação das competências apenas assegura a ordem de subordinação funcional das autoridades, sendo mais livres os conteúdos (e, pois, os comportamentos prescritos).

Ora, deste ponto de vista, a segurança obtida pela sistematização pode estar a serviço de interesses distintos. Quando se enfatiza a certeza, a segurança se torna tributária de um poder centralizador que garante a uniformidade dos conteúdos do vértice para a base do sistema. Quando se enfatiza a isonomia, a segurança será tributária de uma maior liberdade de conteúdos, exigindo-se apenas a correta uniformidade na discriminação das competências, favorecendo, pois, a livre iniciativa.

Em termos atuais, esta ambiguidade está na base das disputas entre as tendências intervencionistas e liberais na compreensão do direito. A primeira, vendo o direito como um instrumento de controle social, em sentido amplo, enfatiza a necessidade da sistematização material, vendo a segurança do cidadão como uma função de segurança do Estado. A segunda, vendo também o direito como um instrumento de controle social, enfatiza a necessidade da sistematização formal, vendo a segurança do Estado como uma função da segurança do cidadão. Para a primeira, se o Estado não estabelece, de modo uniforme, os conteúdos, o cidadão não terá certeza e, pois, estará inseguro. Para a segunda, se o cidadão não for tratado com isonomia pela autoridade competente, cujo limite de ação esteja claramente discriminado, estar-se-á gerando insegurança social.

Parece óbvio que globalmente a segurança jurídica devesse ser um resultado da complementariedade de ambas as sistematizações. Esta complementariedade, contudo, pelo que foi dito, não é automática, mas envolve risco e divergência. A divergência está na tendência mais intervencionista ou mais liberal. O risco está em que a primeira, promovendo a certeza, favorece a centralização do controle social e a diminuição da liberdade individual. A segunda, promovendo a igualdade, favorece a descentralização e diminui a eficiência dos controles.

Ora, o papel das chamadas normas gerais tributárias para a segurança do contribuinte deve ser delineado sobre este pano de fundo. Elas desempenham esta dupla função requerida pela noção de segurança (função-certeza e função-igualdade) que, não sendo idênticas nem automaticamente complementares. envolvem algumas ambiguidades que merecem ser destacadas.

Rubens Gomes de Souza, em seu Compêndio de legislação Tributária (edição póstuma, 1975), já dizia que o Direito Tributário brasileiro, à época em que escrevi, além dos problemas essencialmente económicos e financeiros, apresentava outros, de natureza jurídica, decorrentes, do regime financeiro da Constituição. Destes, os principais eram a possibilidade de caracterização dos impostos privativos, ensejando infrações à discriminação de rendas e às proibições constitucionais em matéria tributária. Finalmente, um grave defeito era apontado no fato de que, na legislação positiva, problemas regidos pelos mesmos princípios recebiam de leis diferentes um tratamento jurídico diverso e muitas vezes contraditório. Daí, segundo ele, a necessidade de uma lei que fixasse determinados princípios gerais, a serem obrigatoriamente observados pelas leis tributárias federais, estaduais e municipais. O projeto de Código Tributário Nacional originou-se do reconhecimento desta necessidade, mencionando, a propósito, Rubens Gomes de Sousa as normas gerais de direito financeiro, então previstas na Constituição de 1946.

A discussão em torno destas normas gerais, já mais recentemente, não esconde os problemas da segurança, em termos de igualdade e certeza, conforme mencionamos. Assim é que, Geraldo Ataliba, em seu artigo, publicado em 1969 na RDP 10/69 principia o seu texto chamando a atenção para a finalidade das normas gerais como preceitos reguladores de conflitos de competência entre os poderes tributantes, bem como dos problemas referentes a limitações constitucionais ao poder geral de tributar, afirmando expressamente que “a rigidez do sistema constitucional tributário por si só, muitas vezes, não é bastante para obviar os conflitos de competência entre as pessoas tributantes” “ou os dissídios tributários com os contribuintes”. Donde a necessidade, prevista constitucionalmente, da emanação de normas gerais de Direito Tributário (p. 46, 47).

No que diz respeito às normas gerais há, conhecidamente, uma controvérsia na doutrina, no que diz respeito à extensão do dispositivo constitucional constante no art. 18, § 1.° da Carta Magna. Saber se as “normas gerais” ali mencionadas devem ter por conteúdo regular limitações e conflitos de competência (teoria dicotômica) ou se, ao contrário, este conteúdo é mais específico, no sentido de codificação de princípios gerais (teoria tricotômica), é um problema, que, a nosso ver, pode esclarecer a noção de segurança e sua própria amplitude, tendo em vista a exigência de igualdade e certeza.

Assim, se atribuirmos às normas gerais uma função específica, ligada à codificação de conteúdos gerais (como se lê em Hamilton Dias de Souza in Comentários ao Código Tributário Nacional, São Paulo, 1975, vol. I, pp. 14 e ss.), o que se observará é que, ao vislumbrar-se nestes conteúdos um asseguramento da racionalidade e unidade do sistema, estamos indo, como diz aquele autor, ao encontro da revisão que sofrem hoje os conceitos de autonomia e federação, na direção de “forte atração centrípeta” (ob. cit. p. 18). Ou seja, a interpretação de que há um conteúdo próprio para a expressão constitucional “normas gerais de Direito Tributário”, reforça a segurança tendo em vista a função-certeza. O que se percebe, neste sentido, é a importância do argumento segundo o qual as normas gerais podem só assim, completar a eficácia de preceitos expressos e de princípios decorrentes da Constituição, mormente quando a realidade brasileira, com sua multiplicidade de municípios e Estados-membros exige uma formulação global, garantidora de unidade e racionalidade.

Em outras palavras, a ênfase no conteúdo próprio, reforçando a função-certeza, encara a segurança como um produto da racionalização, material, posto que o sistema deixado ao “sabor da oportunidade das legislações locais e da jurisprudência muitas vezes vacilante”, nos conduziria antes a um “sistema histórico” (como havia antes da edição do Código Tributário Nacional), o que nos levaria ao “caos tributário”. Este “caos tributário”, significando insegurança, exige o reforço da tipificação genérica de alguns conteúdos e, em consequência, uma subordinação do sistema racional à função-certeza. Ou seja, a função-certeza, referente à tipificaçao abstraía dos conteúdos, se torna uma exigência do sistema racional, como um seu pressuposto, em termos de que a generalidade é, basicamente, uma questão referente ao conteúdo da norma e não ao seu endereçado, donde a regra: o que vale de modo tipificadamente abstraio é geral.

Já a ênfase numa interpretação mais restritiva do dispositivo constitucional, em que se identificam as normas gerais com a própria lei complementar, atribuindo-lhes, não um conteúdo diferente, mas sim o ali mencionado conflito entre as pessoas tributantes e os limites de sua competência, diminui o alcance da função-certeza contida na exigência da segurança, aumentando, por outro lado, a importância da função-igualdade. Com efeito, o decisivo, nesta segunda colocação, é a regra segundo a qual mandamentos proibitivos (normas primárias) não comportam regulamentação. Com isso, a função das normas gerais fica limitada, em termos de seu papel sistemático, à sua natureza de norma secundária de competência (Hart), isto é, normas que provêm a identificação, o câmbio e a aplicação das normas primárias. Destarte, seu papel sistemático não pode ser o de estatuir princípios ainda que gerais, pelo conteúdo, caso esses princípios acabem por afetar conteúdos de competência exclusiva dás ordens parciais. Ora, como diz expressamente Geraldo Ataliba: “Nenhuma limitação, óbice ou restrição pode o Congresso impor a Estados e Municípios, seja a que título for. Nem mesmo a propósito de usar seu poder de elaborar normas gerais de Direito Tributário” (ob. cit. p. 64).

Aqui, nos parece óbvio, a função-certeza da exigência de segurança passa a depender da função-igualdade, posto que a segurança repousa, primariamente, na generalidade enquanto isonomia no tratamento dos endereçados. Ou seja, desde que as ações-tipo estejam corretamente discriminadas em leis ordinárias (função-certeza), às normas gerais (leis complementares) caberá a resolução prévia de conflitos de competência, resultando do sistema assim instaurado a segurança que há de ser o produto da competência sistematicamente discriminada. Por isso, para esta concepção as normas, gerais (em termos de leis nacionais) têm muito mais a natureza de normas secundárias, donde se segue a ênfase posta na correta discriminação, e solução dos conflitos de competência entre a União, Estados e Municípios, insistindo-se sobremaneira na autonomia dos dois últimos.

Fazendo um balanço das posições que aqui descrevemos como tendências, que radicalizamos sem desejar vinculá-las estritamente aos autores mencionados, podemos, em suma, dizer que a relação entre normas gerais tributárias e segurança jurídica assim se resume:

1. Pressupondo-se que segurança na forma descrita seja uma exigência ideológica que nasce com o advento das sociedades de classe e se torna aguda com a sociedade de massas;

2. Pressupondo-se que a exigência de segurança seja típica da ideologia liberal e do Estado liberal nos seus vários matizes;

3. Admitindo, abstração feita do pressuposto ideológico, que, conceitualmente, segurança implica identificação e proteção, para todos, do direito contra o não-direito;

4. Admitindo, pois, que a exigência de segurança postula, de um lado, a generalidade em termos de discriminação de competência, para proteção do valor da igualdade; de outro, a absíração e a lipificação, para proíeção do valor da certeza; isto é, segurança exige igualdade e certeza;

5. Admitindo que a igualdade repousa na presença de normas gerais, que então se definem pela pluralidade dos endereçados; e que a certeza repousa em normas gerais, cuja característica de tipo abstrato é um atributo de seu conteúdo;

6. Admitindo que daí decorre que a segurança é uma função da igualdade (função-igualdade) e da certeza (função-certeza), funções estas que têm pesos diferentes, posto que a primeira garante segurança a partir do receptor jurídico, ao passo que a segunda o faz a partir do emissor;

7. Admitindo que os ordenamentos jurídicos contêm normas primárias (as que estabelecem obrigações e proibições) e secundárias (as que regulam a identificação, mudança e aplicação das primárias) (Hart, The Concept of Law);

8. Admitindo que a presença de normas gerais tribulárias é fundamental para a segurança jurídica, quer da perspectiva do emissor (função-certeza) quer da do receptor (função-igualdade);

9. Então podemos ver nas normas gerais tributárias de que nos fala a Constituição ou normas primárias cujo atributo seria a unidade de certos conteúdos genéricos (tendência que privilegia a função-certeza na produção da segurança com a consequência de favorecer o centralismo e o intervencionismo) ou apenas normas secundárias, cujo atributo seria a pluralidade dos endereçados, tratados igualmente, exigindo por conseguinte, que a segurança repousasse numa rígida discriminação das competências por normas secundárias (tendência que privilegia a função-igualdade na produção da segurança, com a consequência de favorecer uma certa perda de controle da unidade material do sistema).

Diante disso perguntamos: qual a razão última desta divergência e que saída pode ser proposta?

A razão última da divergência parece se localizar, do ponto de vista técnico-dogmático do direito brasileiro, num certo dualismo metódico do nosso Direilo Constitucional que, por tradição, comporta uma estrutura política aberta, do tipo americano, e uma estrutura administrativa fechada, do tipo continental europeu. Assim, quando vemos a questão da segurança, privilegiando a função-certeza e o papel das normas gerais tributárias como normas primárias que contêm os princípios destinados à pluralidade, dos sujeitos, então estamos olhando para a estrutura administrativa da constituição que, deste ângulo, exige o CTN como conjunto de normas gerais capazes de dar unidade de conteúdo ao sistema tributário. Quando vemos, ao contrário, a questão da segurança, privilegiando a função-igualdade das normas gerais tributárias como normas que contêm os critérios gerais de solução dos conflitos de competência, então estamos olhando para a estrutura política da constituição que, deste ângulo, vê no CTN um conjunto de normas secundárias que instauram uma unidade de competência para o sistema tributário. No primeiro caso, a igualdade requerida pela segurança é função da certeza. No segundo, a certeza requerida pela segurança é função da igualdade.

No fundo, porém, deste problema técnico está, por último, uma opção ideológica entre uma concepção mais liberal clássica e outra mais liberal centralizadora. Qualquer defesa que se faça do papel das normas gerais tributárias para a segurança jurídica — e nós não deixamos de sublinhar sua importância — não pode esquecer esta opção.

O assunto tem, pois, uma relevância que ultrapassa a querela formalista, pois segurança jurídica, como se viu, é também um assunto de natureza política. Neste sentido quer-nos parecer que, dentro da realidade brasileira atual a qual, de um lado, sofre sempre as consequências dos personalismos e individualismos próprios de sua cultura, de outro, as tentações de um autoritarismo tutelar que mal se disfarça, a necessidade e a importância das normas gerais tributárias para a segurança jurídica devem, prima facie, ser sublinhadas. Eliminá-las é um risco muito grande, que nos obrigaria a acreditar numa ordem espontânea, capaz de, por si só, responder às exigências da justiça, o que, certamente, não é de se aceitar, sobretudo se olharmos nossa tradição. Por sua vez, acreditar também que sua presença, no sistema tributário, seja, por si só, garantia de segurança, é também uma ingenuidade que se deve evitar.

por Tercio Sampaio Ferraz Jr. - Professor das Faculdades de Direito da Universidade de São Paulo e Universidade Católica de São Paulo

Texto digitado e organizado por: Rafael Foelkel.

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