terça-feira, 7 de julho de 2015

07/07 PIS/COFINS sobre as receitas financeiras no regime não-cumulativo: O problema não é (apenas) o Decreto 8.426/2015

1. INTRODUÇÃO

Em 01/04/2015 foi publicado o Decreto 8.426, que restabelece as alíquotas do PIS e da COFINS sobre as receitas financeiras auferidas pelas pessoas jurídicas sujeitas ao regime de incidência não-cumulativa, com vigência a partir de 01/07/2015. O Decreto 8.426/2015 revoga o Decreto 5.442/05, que previa a aplicação de alíquota zero sobre as receitas financeiras.

O novo decreto, que foi recebido com bastante surpresa e críticas pelo mercado,determina a aplicação dos percentuais de 0,65% (PIS) e 4% (Cofins) sobre as receitas financeiras auferidas pelas pessoas jurídicas sujeitas ao regime não-cumulativo das contribuições, que até então não sofriam tributação. A nova incidência abrange tanto os contribuintes que sujeitam a totalidade de suas receitas ao regime não-cumulativo quanto aqueles em que apenas parte das receitas se submete à não-cumulatividade.

A surpresa se deu em função do regime até então vigente, que desonerava as receitas financeiras no regime não-cumulativo das contribuições há mais de 10 (dez) anos. Já as críticas se voltam à inconstitucionalidade do decreto, que não seria o meio legal hábil para restabelecer as alíquotas dos tributos.

Em vista dessa discussão, o presente estudo tem o intuito de promover breves comentários quanto aos problemas e contexto normativo Decreto 8.426/2015. Tendo em vista a limitada extensão do texto, o Autor deixará de abordar todos os aspectos referentes à tributação das receitas financeiras pelo PIS/Cofins, ou mesmo todas as possíveis patologias do aludido Decreto.

2. O DECRETO 8.426/2015 E SEU CONTEXTO

Até o momento de conclusão do presente artigo, muito se tem comentado na imprensa especializada de que o Decreto 8.426/2015 seria inconstitucional, eis que os decretos não são meios hábeis para restabelecer as alíquotas de tributos. Também o fato de vedar o aproveitamento de créditos sobre as despesas financeiras tem sido alvo de críticas, uma vez que as receitas financeiras estão expressamente alocadas no regime não-cumulativo de apuração das contribuições, que supostamente acarreta o aproveitamento de créditos.

De fato, a CF/88 veda que os entes tributantes exijam ou aumentem tributo sem lei que o estabeleça (artigo 150, inciso I da CF/88). Além disso, somente constam permissões de alteração de alíquotas de tributos, pelo Poder Executivo (ou seja, de maneira infralegal),quanto a alguns impostos de competência da União Federal (Imposto de Importação, Imposto de Exportação, Imposto sobre Produtos Industrializados e Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio, Seguro e Títulos ou Valores Mobiliários). Desse modo, quaisquer outras alterações de alíquotas, por meios infralegais, são inconstitucionais, ante o silêncio eloquente da Carta.

Ocorre que, da mesma forma que o Poder Executivo não poderia ter restabelecido as alíquotas do PIS e da Cofins sobre as receitas financeiras no regime não-cumulativo, não poderia tê-las reduzido a zero, por meio dos revogados Decretos 5.164/04 e Decreto 5.442/05 (o decreto 8.426/2015 revogou o último). Isso porque a CF/88 não autoriza qualquer alteração de alíquotas de PIS/Cofins por meio de decretos presidenciais, seja como aumento ou redução, já que é diminuto o rol de impostos em que tal providência é permitida, como visto. Reforça essa tese o parágrafo 6º do artigo 150 da CF/88, ao prever que “qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2.º, XII, g”. Embora esse dispositivo não trate expressamente da redução da alíquota a zero, tal expediente nada mais é do que uma forma de isenção, como entende abalizada doutrina[1]. Assim, o artigo 150, § 6º da CF/88 reforça o argumento de que as possibilidades de alteração de alíquotas de tributos via decreto, de modo a exonerar o contribuinte de seu recolhimento, ou ainda aumentar a carga tributária anteriormente prevista, são apenas aquelas expressamente apontadas na própria CF/88, com exclusão de todas as outras.

Por outro lado, o núcleo desse problema não são os Decretos 5.164/04, 5.442/05 e 8.426/2015, mas o dispositivo legal que lhes dá suporte, qual seja, o artigo 27, § 2º da Lei 10.865/2004, vazado nos seguintes termos:

Art. 27. (...)
(...)
§ 2o O Poder Executivo poderá, também, reduzir e restabelecer, até os percentuais de que tratam os incisos I e II do caput do art. 8o desta Lei, as alíquotas da contribuição para o PIS/PASEP e da COFINS incidentes sobre as receitas financeiras auferidas pelas pessoas jurídicas sujeitas ao regime de não-cumulatividade das referidas contribuições, nas hipóteses que fixar.

O texto é claro: ao Poder Executivo foi transmitida a competência para reduzir e restabelecer as alíquotas das contribuições sobre as receitas financeiras, apartando o tratamento a ser dado a tais receitas daquele atribuído às demais receitas auferidas pelos contribuintes. Como não existe qualquer autorização da CF/88 que permita o aumento ou redução das alíquotas de PIS/Cofins pelo Poder Executivo, a inconstitucionalidade está no dispositivo legal citado, ainda que essa inconstitucionalidade também macule os decretos dele decorrentes.

A primeira conclusão a que se chega, portanto, é a de que as receitas financeiras foram indevidamente excluídas do âmbito de incidência do PIS e da Cofins pelos Decretos 5.164/04 e 5.442/05, pois tais decretos têm fundamento em dispositivo legal flagrantemente inconstitucional. Logo, tais receitas, em princípio, deveriam ter sido tributadas nesse período.

Entretanto, da afirmativa acima não é possível concluir que os contribuintes deverão recolher os montantes a título de PIS e Cofins sobre as receitas financeiras que deixaram de recolher nos últimos 5 (cinco) anos, aplicando sobre tais valores as alíquotas ordinárias das contribuições (1,65% para PIS e 7,6% para a Cofins).

Isso porque a própria incidência das contribuições sobre tais receitas é de discutível constitucionalidade, não pela materialidade em si eleita pela legislação, pois as receitas financeiras se amoldam ao delineamento constitucional do PIS/Cofins de incidência sobre a receita dos contribuintes (o que abre margem à incidência sobre a totalidade das receitas), mas por uma questão de isonomia e não-discriminação.

Com efeito, os princípios da isonomia, previsto no artigo 5º, caput da CF/88, e da não-discriminação tributária, seu corolário previsto no artigo 150, caput e inciso II da CF/88[2], vedam que a legislação dê tratamento distinto a dois contribuintes que se encontrem em situação equivalente. Conforme a lição de RICARDO LOBO TORRES[3], “as discriminações fiscais são desigualdades infundadas que prejudicam a liberdade do contribuinte. Qualquer discrimine desarrazoado, que signifique excluir alguém da regra tributária geral ou de um privilégio não-odioso, constituirá ofensa aos seus direitos humanos, posto que desrespeitará a igualdade assegurada no art. 5º da CF” (grifos originais).

No caso em análise, a situação atentatória à isonomia e à não-discriminação é resultante das Leis 9.718/98, 10.637/02 e 10.833/03, que dão tratamentos distintos às receitas financeiras dependendo do regime de apuração do contribuinte: (1) receita não tributável no caso do regime cumulativo (Lei 9.718/98), eis que não operacional (não integra a receita bruta), e (2) receita tributável no caso do regime não-cumulativo (Leis 10.637/02 e 10.833/03), pois, embora as receitas financeiras sejam não operacionais, esse regime abrange a totalidade das receitas auferidas pela pessoa jurídica, não apenas as operacionais.

A questão, aqui, como dito, não é de incompatibilidade com as materialidades previstas na CF/88, pois a Carta, ao atribuir competência tributária à União Federal para a instituição de contribuições sociais (artigo 195), expressamente prevê a possibilidade de tributação da receita ou faturamento. Nesse prisma, o entendimento é o de que se poderia tributar tanto a totalidade das receitas do contribuinte, conforme o regime não-cumulativo (“receita”), ou apenas o faturamento ou receita bruta (operacional), atualmente objeto do regime cumulativo. Contudo, se a competência tributária abrange as duas possibilidades, ao exercer tal competência é defeso ao legislador infraconstitucional estabelecer materialidades distintas, para distintos grupos de contribuintes, de acordo com o regime de apuração de cada um, como se se tratassem o PIS/Cofins cumulativos e não-cumulativos de tributos distintos. Não se trata de meras variações na formação da base de cálculo, que fique bem claro, mas de adoção de  materialidades distintas entre os regimes[4], o que entendo ser vedado pela CF/88. Se até 30 de junho p.f. essa circunstância terá sido praticamente irrelevante no tocante às receitas financeiras no regime não-cumulativo, pois as duas situações se equivaliam (não incidência no cumulativo e alíquota zero no não-cumulativo), a partir de 1º julho essa discriminação indevida se tornará evidente e, com ela, também se evidenciará a própria inconstitucionalidade da distinção entre os regimes. Ainda que cumulatividade e não-cumulatividade ensejem tratamentos legais distintos em uma série de nuances dos tributos em análise (diferentes alíquotas, possibilidade de aproveitamento de créditos, obrigações acessórias), fato é que uma receita financeira (não operacional) para um sujeito no regime cumulativo é exatamente a mesma para um sujeito no regime não-cumulativo, não havendo motivo justificável para que essas situações sejam tratadas distintamente, pois ambos os contribuintes estão na mesma situação quanto a tais receitas e deveriam receber tratamento uniforme da legislação (tributação ou não tributação para todos).

Logo, a fragilidade da legislação nesse ponto é ainda maior que a fragilidade do artigo 27, § 2º da Lei 10.865/04, o que enfraquece a possibilidade de cobrança retroativa das contribuições sobre as receitas financeiras no regime não-cumulativo

Além disso, não seria acertada eventual tentativa da Receita Federal do Brasil de tentar cobrar as contribuições que deixaram de ser recolhidas nos últimos 5 (cinco) anos porque, além do quanto dito acima, os contribuintes se valeram de uma posição oficial do Governo Federal quanto à intributabilidade dessas receitas, manifestada pelos Decretos 5.164/04 e 5.442/05. Desse modo, os contribuintes estão protegidos pela confiança legítima que depositaram nessa legislação, sendo defeso ao Fisco valer-se de sua torpeza para cobrar algo de questionável legitimidade.

Outro ponto relevante é que o fundamento legal do referido decreto (artigo 27, § 2º da Lei 10.865/04) segue válido e vigente (assim como o próprio Decreto 8.426/2015 a partir de 01/07/2015), ao menos até que outra norma (legislativa ou decisão em ADIn) declare a sua invalidade.

Por tudo isso, ainda que a União Federal não pudesse ter reduzido a zero as alíquotas do PIS e da Cofins sobre as receitas financeiras e o tenha feito ao arrepio da Constituição Federal, a situação concreta acarretada por essa redução corrigia uma distorção presente na própria legislação, que indevidamente aponta materialidades e bases de cálculo distintas para os regimes cumulativo e não-cumultivo, em flagrante ofensa à isonomia e à não-discriminação.

3. CONCLUSÃO

A inconstitucionalidade atribuída ao Decreto 8.426/2015 decorre da própria inconstitucionalidade do artigo 27, § 2º da Lei 10.865/04, que não poderia ter delegado ao Poder Executivo a competência para reduzir e restabelecer as alíquotas do PIS e da Cofins sobre as receitas financeiras no regime não-cumulativo. Essa assertiva pode parecer oportunista nesse momento, uma vez que os contribuintes não vêm recolhendo as contribuições sobre tais receitas desde o advento do Decreto 5.164/04 (que antecedeu o Decreto 5.442/05), cuja constitucionalidade também é maculada ante o vício de seu fundamento legal. Por outro lado, a própria criação de materialidades e bases distintas para os regimes cumulativo e não-cumulativo (receita bruta e totalidade das receitas, respectivamente), conforme as Leis 9.718/98, 10.637/02 e 10.833/03, põe em dúvida se o PIS e a Cofins deveriam ter sido recolhidos sobre as receitas financeiras no regime não-cumulativo durante esse período, pois a adoção dessas bases distintas também afronta a Constituição Federal. No fim das contas, na ponderação entre as distintas impropriedades da legislação (parcial e geral), parece que o mais justo seja a manutenção da exoneração verificada nos últimos anos, que de certa forma corrigia uma discriminação indevida entre contribuintes sujeitos aos regimes cumulativo e não-cumulativo.

Com relação às operações que ocorram a partir de 01/07/2015, entendo que a aplicação do Decreto 8.426/2015 perpetuará uma situação pretérita inconstitucional, eis que ele traduz a aplicação do artigo 27, § 2º da Lei 10.865/2004, que não encontra qualquer guarida na CF/88. Desse modo, eventual afastamento de sua aplicação, pelo Poder Judiciário, terá o reflexo de não apenas corrigir a inconstitucionalidade citada, mas também a própria inconstitucionalidade das diferentes materialidades e bases de cálculo verificadas entre os regimes cumulativo e não-cumulativo.

Por fim, nada impede que as receitas financeiras sejam tributadas pelo PIS/Cofins, desde que essa incidência alcance todos os contribuintes, por uma questão de isonomia e não-discriminação. Para tanto, a legislação ordinária deverá ser alterada, de modo a acomodar essa incidência para os dois regimes aplicáveis às contribuições.

[1]Nesse sentido: CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 24ª edição. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 97; CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 495; MACHADO, Hugo de Brito. Curso de direito tributário. 30ª edição. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 236.

[2] “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:

(...)

II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos”

[3]Tratado de Direito Constitucional, Financeiro e Tributário – Volume III – Os Direitos Humanos e a Tributação: Imunidades e Isonomia. 2ª edição. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 399.

[4] Nesse ponto referencio a precisa lição de PAULO DE BARROS CARVALHO, para quem a base de cálculo apresenta três funções, quais sejam: (1) função mensuradora, de medir as proporções econômicas do fato gerador; (2) função objetiva, destinada a compor a específica determinação da dívida (em conjunto com a alíquota); e (3) função comparativa, de afirmar, confirmar ou infirmar o critério material da hipótese tributária (in Curso de Direito Tributário. 17ª edição. São Paulo: Saraiva, 2005, pp. 322-329). Desse modo, a adoção da totalidade das receitas, no regime não-cumulativo, aponta que auferir a totalidade de receitas é a materialidade do PIS/Cofins nesse regime. De outra banda, o faturamento enquanto base de cálculo no regime cumulativo confirma a materialidade correspondente, o que realça a disparidade material dos regimes.

por Maurício Barros - Doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP, Mestre em Direito Tributário pela PUC/SP, Especialista em Direito Tributário pelo IBET/SP, Advogado formado pela PUC/SP, Professor Convidado dos Cursos de Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Professor Convidado dos Cursos de,Pós-Graduação da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP), Juiz Contribuinte do Tribunal de Impostos e Taxas do Estado de São Paulo, Membro Efetivo da Comissão do Contencioso Administrativo Tributário da OAB/SP, Diretor da Consultoria Tributária de Gaia Silva Gaede& Associados em São Paulo

Fonte: ABDF

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