Sabendo que a cultura contabilística pode transformar o cidadão
em alguém socialmente mais capacitado e responsável, é estranho que ele se
alheie de uma disciplina essencial para si próprio e para a compreensão da
sociedade.
De acordo com a aceção de cultura em que
assentamos no presente artigo, ser humano culto é o que desenvolve as suas
qualidades intelectuais e o seu gosto, não tendo que ser erudito mas procurando
sempre compreender o mundo e, em particular, a sociedade na qual se integra.
O que exigirá que não se confine a um campo
estrito do conhecimento, da técnica ou das artes em que possa estar
especializado.
Há, como se sabe, outras aceções de
cultura, designadamente a que respeita a um conjunto de atitudes, costumes e
valores estáveis, formados no decurso de períodos longos e partilhados
generalizadamente por grupos humanos determinados ou pelas pessoas de dadas sociedades.
Dentro desta aceção, tem sido estudada a
influência da diversidade cultural na prática contabilística, no que se refere,
por exemplo, aos julgamentos profissionais dos contabilistas e à divulgação de
informação. São, a este propósito, de assinalar, entre outros, diversos estudos
publicados na revista Accounting Horizons da American Accounting Association.
O presente artigo situa-se, todavia, em
perspetiva diferente. Incide sobre a cultura (ou a não cultura) contabilística
do cidadão e procura refletir sobre as vantagens resultantes dessa cultura e/ou
sobre as respetivas insuficiências e consequentes desvantagens. Abordamos um
tema sobre o qual não é fácil encontrar apoio em textos, o que em boa medida
justifica que a nossa exposição se apresente algo desordenada.
Começamos, assim, por observar algo que
devia surpreender, isto é, que em muitas sociedades Contabilidade e cultura
tendem a ser encaradas como estranhas entre si.
O
«contabilista sem rasgo»
Entender-se-á com frequência que o ser
humano culto não tem que ter quaisquer conhecimentos em Contabilidade ou sequer
a mais leve sensibilidade à nossa disciplina. A Contabilidade proporciona,
porém, informação e controlo sobre os valores e a riqueza de tipos muito diferentes
de entidades (pessoas, organizações privadas e públicas, países), satisfazendo
necessidades sociais. Tem, seguramente, muito que ver com a vida dos cidadãos.
E esta profunda ligação sobressai aquando da eclosão de crises e dos chamados
escândalos financeiros: termos como imparidades, provisões, dívidas de curto e
de médio longo prazos, prejuízos, capitais próprios, relatórios de auditoria,
entidades de supervisão passam, nessas ocasiões, a dominar o turbilhão dos
noticiários.
Apesar disso, a Contabilidade tende a ser,
com enorme ligeireza, depreciada.
Lembramo-nos de um conhecido autarca que se
comprometeu – há mais de uma década e com assinalável êxito - em equilibrar
financeiramente a câmara municipal a que presidia, sendo muito criticado por
«não ter rasgo, não passando de um contabilista.» Mais tarde, com Portugal
martirizado pela intervenção da troika, diria o autarca: «Eu era contabilista e
não tinha rasgo, enquanto outros rasgavam o país.»1
«Incorrer
na despesa»
Numa outra perspetiva, admita-se que ontem
dado cidadão adquiriu bens num hipermercado e que apresentou o cartão de
crédito na caixa registadora, a fim de regularizar a transação. O que
aconteceu? Com a aquisição, não houve um custo (gasto) nem um pagamento. Mas
ontem o cidadão incorreu numa despesa. Em aquisições a crédito, a despesa
concretiza-se, como se sabe, com a receção dos bens e a consequente dívida.
Mais tarde, com a liquidação da dívida, já não haverá despesa, mas sim
pagamento. Os custos (gastos) associam-se, por seu turno, a consumos. Tendo
sido, por hipótese, adquiridos detergentes, os custos (gastos) ocorrem à medida
que esses bens forem utilizados em limpezas.
A Contabilidade clarifica, portanto, a
natureza das operações, incluindo as operações correntes dos cidadãos e também
por isso se liga ao quotidiano de todos nós.
A aquisição a crédito reflete, aliás, algo
de simples mas profundo: o princípio do dualismo. De acordo com este princípio
- distinto da digrafia, mas que lhe está subjacente-, em cada operação
realizada há uma aplicação, a qual supõe uma origem ou financiamento. Ao bem
adquirido (aplicação) contrapôs-se o correspondente financiamento; e não tendo
havido financiamento por meios próprios, existiu uma dívida (origem)
financiando a aquisição.
Acresce que a ideia de que «não se pagou
mas incorreu-se numa despesa» sublinha as consequências da aquisição. Por isso
mesmo, o próprio défice das contas públicas contempla, desde há muito, não só a
diferença entre os recebimentos e os pagamentos do Estado originados num período
determinado e consumados nesse mesmo período, como também o valor das
aquisições verificadas no período e com pagamentos posteriores.
Um mínimo de cultura em Contabilidade faz,
portanto, parte de uma cultura de cidadania, devendo interessar a qualquer participante
esclarecido na sociedade.
Fará sentido, por exemplo, que o cidadão
não compreenda, no extrato da sua conta bancária, o significado de valores com
sinal oposto («débitos» e «créditos») que concorrem para o saldo num dado
momento? Fará sentido que não compreenda que valores a «débito» significam,
simplesmente, «a seu débito», ou seja, contra o depositante e a favor do banco,
enquanto valores a «crédito» significam «a seu crédito», isto é, a favor do
depositante e contra o banco?
E fará o mínimo sentido – num plano que
envolve já profundas responsabilidades sociais - que os gestores das
organizações (sejam gestores de topo ou de níveis intermédios e
independentemente da sua formação de base) possam não ter ideias precisas sobre
os componentes que intervêm no apuramento dos resultados da respetiva
organização?
Os exemplos são, aliás, suscetíveis de se
multiplicar. Que deve fazer quem pretenda iniciar um negócio num centro
comercial? Mobilizar poupanças e empréstimos e “atirar-se” de imediato ao
negócio? Ou avaliar riscos, recorrendo a instrumentos apropriados?
Suponhamos que se espera suportar encargos
mensais de 4 500 euros com o negócio, em ordenados e correspondentes
sobrecargas, renda do estabelecimento, despesas de condomínio, etc.. Admita-se
que se prevê obter, em média, 15 por cento de margem, atendendo aos valores
estimados de compra e de venda - o que corresponde a, em média, vender por 100
euros o que for adquirido por 85, ou a vender por 20 euros o que for comprado
por 17.
Com essas previsões, concluir-se-ia que as
vendas deviam, pelo menos, cifrar-se em 30 mil euros por mês, visto que a
expressão «vendas x 0,15 = 4 500» conduz a 30 mil euros de vendas. Este valor permitiria
equilibrar o negócio, não se apurando lucros nem se sofrendo prejuízos. E
suscitar-se-ia a questão de 30 mil euros de vendas mensais serem, com realismo,
atingíveis, ou se seria de ponderar outra localização ou mesmo outro ramo de
negócio.
A Contabilidade não se limita, portanto, a
registar débitos e créditos: caracteriza as partes da realidade sobre que
incide, assenta em noções, trabalha com conceitos, relaciona valores, clarifica
as escolhas, auxilia na tomada de decisões, faculta uma melhor compreensão dos
negócios e da sociedade.
O
audit expectation gap
Igualmente reveladora de insuficiências nos
conhecimentos gerais sobre matérias contabilísticas é a dificuldade do cidadão
entender o relatório do auditor. Comenta-se com frequência que os relatórios de
auditoria não alertaram para determinadas distorções das demonstrações financeiras
e, por vezes, culpa-se o auditor pelos próprios erros ou omissões na informação
auditada. Mas raramente se sabe o que efetivamente os auditores podem, com razoabilidade
e responsabilidade, oferecer. Estamo-nos a referir ao que habitualmente se designa
por audit expectation gap.
Tem-se tentado reduzir o audit expectation
gap, sobretudo pela via de melhorias no relatório de auditoria, transmitindo
com maior clareza as responsabilidades, o âmbito do trabalho e a opinião do
auditor. A redução conseguida parece ser, no entanto, muito ténue, podendo
questionar-se se não será mais eficaz privilegiar ações junto do cidadão (por
exemplo, junto de associações de investidores), com vista a que a
responsabilidade do auditor e a existência de determinados fatores sempre
presentes no processo de auditoria, como a materialidade e o risco, façam parte
do conhecimento geral.2
Recordamos, por último, um caso ocorrido há
mais de 15 anos. Durante uma campanha eleitoral para a Assembleia da República,
determinado partido prometeu que se ganhasse as eleições os impostos não
subiriam. O partido ganhou as eleições, formou governo e poucos meses depois as
propinas no ensino superior público foram aumentadas. Sucedeu, então, que num
debate televisivo foi afirmado a um secretário de Estado que o Governo, contra
repetidas promessas eleitorais, tinha acabado de aumentar impostos. Perante esse
«facto irrefutável», o secretário de Estado ficou atónito e sem resposta. Os
participantes no debate desconheciam, pelos vistos, a noção comezinha de que
taxas são encargos suportadas pelos beneficiários diretos de um serviço
público, característica que as distingue dos impostos. E não se trata, como se sabe,
de mera questão terminológica, dado que determinados serviços públicos serem
financiados por taxas ou apenas por impostos é opção política repleta de
consequências económico-sociais.
A concluir, sublinhamos que:
- Atento o objeto da Contabilidade
- informação e controlo tanto dos nossos
próprios valores e riqueza, como indivíduos, como dos valores e riqueza das
organizações que zelam (ou que deviam zelar) pelas poupanças dos cidadãos, bem
como daquelas que nos empregam e que continuarão, se respeitarem determinados
equilíbrios, a proporcionar- nos emprego e os correspondentes rendimentos – é,
no mínimo, estranho que o cidadão se alheie de uma disciplina essencial para si
próprio e para a compreensão da sociedade;
- A sucessão dos chamados escândalos
financeiros, envolvendo pessoas e entidades supostamente acima de qualquer
suspeita, evidencia a necessidade de se (re)construir um sólido sentido de
responsabilidade na gestão das organizações, parecendo ser para esse fim
fundamental o acompanhamento das unidades económicas e das respetivas contas
por cidadãos informados e exigentes;
- O conhecimento e a cultura, nunca será de
mais lembrá-lo, transformam o ser humano;
- Como observou o Professor Jorge Tua
Pereda, quem não sabe História limita-se, quando olha para as ruínas de um
monumento (por exemplo, para o Coliseu de Roma), a ver pedras.
- A cultura contabilística pode,
seguramente, transformar o cidadão em alguém socialmente mais capacitado e
responsável.
Notas
1 Manifestou-se, nesse caso, a função de
avaliação social da Contabilidade. Houve um instrumento (a Contabilidade) que
permitiu distinguir um gestor criterioso e responsável de outros. Vide, a
propósito, Spitz e Scheid, em Révue Française de Comptabilité, n.º 382,
novembro de 2005, pp 28-31. Os autores destacam três tipos de funções sociais
da Contabilidade: políticas, associadas, por exemplo, ao controlo na
arrecadação de receitas fiscais; de arbitragem, permitindo conciliar
interesses, através, por exemplo, da apresentação periódica de contas ou de
relatórios elaborados com vista a fusões e aquisições; de avaliação social,
proporcionando a distinção entre gestores criteriosos e não criteriosos.
2 As nossas referências ao audit
expectation gap estão deliberadamente abreviadas. Há abordagens mais alargadas ao
tema, por exemplo, nos trabalhos de Gray et al. (2011) e Ruhnke e Schmidt
(2014), autores que salientam que o audit expectation gap tanto pode radicar em
expectativas erradas do público como no desempenho do auditor ou nas próprias
normas de auditoria.
Por Helena Inácio e Rui Mota - Docentes do ISCA-UA
Bibliografia disponível em («A Ordem – Publicações – Revista TOC – Bibliografia»)
Fonte: Revista OTOC n° 181
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