quarta-feira, 13 de maio de 2015

13/05 A Contabilidade como parte de uma cultura de cidadania

Sabendo que a cultura contabilística pode transformar o cidadão em alguém socialmente mais capacitado e responsável, é estranho que ele se alheie de uma disciplina essencial para si próprio e para a compreensão da sociedade.

De acordo com a aceção de cultura em que assentamos no presente artigo, ser humano culto é o que desenvolve as suas qualidades intelectuais e o seu gosto, não tendo que ser erudito mas procurando sempre compreender o mundo e, em particular, a sociedade na qual se integra.

O que exigirá que não se confine a um campo estrito do conhecimento, da técnica ou das artes em que possa estar especializado.

Há, como se sabe, outras aceções de cultura, designadamente a que respeita a um conjunto de atitudes, costumes e valores estáveis, formados no decurso de períodos longos e partilhados generalizadamente por grupos humanos determinados ou pelas pessoas de dadas sociedades.

Dentro desta aceção, tem sido estudada a influência da diversidade cultural na prática contabilística, no que se refere, por exemplo, aos julgamentos profissionais dos contabilistas e à divulgação de informação. São, a este propósito, de assinalar, entre outros, diversos estudos publicados na revista Accounting Horizons da American Accounting Association.

O presente artigo situa-se, todavia, em perspetiva diferente. Incide sobre a cultura (ou a não cultura) contabilística do cidadão e procura refletir sobre as vantagens resultantes dessa cultura e/ou sobre as respetivas insuficiências e consequentes desvantagens. Abordamos um tema sobre o qual não é fácil encontrar apoio em textos, o que em boa medida justifica que a nossa exposição se apresente algo desordenada.

Começamos, assim, por observar algo que devia surpreender, isto é, que em muitas sociedades Contabilidade e cultura tendem a ser encaradas como estranhas entre si.

O «contabilista sem rasgo»

Entender-se-á com frequência que o ser humano culto não tem que ter quaisquer conhecimentos em Contabilidade ou sequer a mais leve sensibilidade à nossa disciplina. A Contabilidade proporciona, porém, informação e controlo sobre os valores e a riqueza de tipos muito diferentes de entidades (pessoas, organizações privadas e públicas, países), satisfazendo necessidades sociais. Tem, seguramente, muito que ver com a vida dos cidadãos. E esta profunda ligação sobressai aquando da eclosão de crises e dos chamados escândalos financeiros: termos como imparidades, provisões, dívidas de curto e de médio longo prazos, prejuízos, capitais próprios, relatórios de auditoria, entidades de supervisão passam, nessas ocasiões, a dominar o turbilhão dos noticiários.

Apesar disso, a Contabilidade tende a ser, com enorme ligeireza, depreciada.

Lembramo-nos de um conhecido autarca que se comprometeu – há mais de uma década e com assinalável êxito - em equilibrar financeiramente a câmara municipal a que presidia, sendo muito criticado por «não ter rasgo, não passando de um contabilista.» Mais tarde, com Portugal martirizado pela intervenção da troika, diria o autarca: «Eu era contabilista e não tinha rasgo, enquanto outros rasgavam o país.»1

«Incorrer na despesa»

Numa outra perspetiva, admita-se que ontem dado cidadão adquiriu bens num hipermercado e que apresentou o cartão de crédito na caixa registadora, a fim de regularizar a transação. O que aconteceu? Com a aquisição, não houve um custo (gasto) nem um pagamento. Mas ontem o cidadão incorreu numa despesa. Em aquisições a crédito, a despesa concretiza-se, como se sabe, com a receção dos bens e a consequente dívida. Mais tarde, com a liquidação da dívida, já não haverá despesa, mas sim pagamento. Os custos (gastos) associam-se, por seu turno, a consumos. Tendo sido, por hipótese, adquiridos detergentes, os custos (gastos) ocorrem à medida que esses bens forem utilizados em limpezas.

A Contabilidade clarifica, portanto, a natureza das operações, incluindo as operações correntes dos cidadãos e também por isso se liga ao quotidiano de todos nós.

A aquisição a crédito reflete, aliás, algo de simples mas profundo: o princípio do dualismo. De acordo com este princípio - distinto da digrafia, mas que lhe está subjacente-, em cada operação realizada há uma aplicação, a qual supõe uma origem ou financiamento. Ao bem adquirido (aplicação) contrapôs-se o correspondente financiamento; e não tendo havido financiamento por meios próprios, existiu uma dívida (origem) financiando a aquisição.

Acresce que a ideia de que «não se pagou mas incorreu-se numa despesa» sublinha as consequências da aquisição. Por isso mesmo, o próprio défice das contas públicas contempla, desde há muito, não só a diferença entre os recebimentos e os pagamentos do Estado originados num período determinado e consumados nesse mesmo período, como também o valor das aquisições verificadas no período e com pagamentos posteriores.

Um mínimo de cultura em Contabilidade faz, portanto, parte de uma cultura de cidadania, devendo interessar a qualquer participante esclarecido na sociedade.

Fará sentido, por exemplo, que o cidadão não compreenda, no extrato da sua conta bancária, o significado de valores com sinal oposto («débitos» e «créditos») que concorrem para o saldo num dado momento? Fará sentido que não compreenda que valores a «débito» significam, simplesmente, «a seu débito», ou seja, contra o depositante e a favor do banco, enquanto valores a «crédito» significam «a seu crédito», isto é, a favor do depositante e contra o banco?

E fará o mínimo sentido – num plano que envolve já profundas responsabilidades sociais - que os gestores das organizações (sejam gestores de topo ou de níveis intermédios e independentemente da sua formação de base) possam não ter ideias precisas sobre os componentes que intervêm no apuramento dos resultados da respetiva organização?

Os exemplos são, aliás, suscetíveis de se multiplicar. Que deve fazer quem pretenda iniciar um negócio num centro comercial? Mobilizar poupanças e empréstimos e “atirar-se” de imediato ao negócio? Ou avaliar riscos, recorrendo a instrumentos apropriados?

Suponhamos que se espera suportar encargos mensais de 4 500 euros com o negócio, em ordenados e correspondentes sobrecargas, renda do estabelecimento, despesas de condomínio, etc.. Admita-se que se prevê obter, em média, 15 por cento de margem, atendendo aos valores estimados de compra e de venda - o que corresponde a, em média, vender por 100 euros o que for adquirido por 85, ou a vender por 20 euros o que for comprado por 17.

Com essas previsões, concluir-se-ia que as vendas deviam, pelo menos, cifrar-se em 30 mil euros por mês, visto que a expressão «vendas x 0,15 = 4 500» conduz a 30 mil euros de vendas. Este valor permitiria equilibrar o negócio, não se apurando lucros nem se sofrendo prejuízos. E suscitar-se-ia a questão de 30 mil euros de vendas mensais serem, com realismo, atingíveis, ou se seria de ponderar outra localização ou mesmo outro ramo de negócio.

A Contabilidade não se limita, portanto, a registar débitos e créditos: caracteriza as partes da realidade sobre que incide, assenta em noções, trabalha com conceitos, relaciona valores, clarifica as escolhas, auxilia na tomada de decisões, faculta uma melhor compreensão dos negócios e da sociedade.

O audit expectation gap

Igualmente reveladora de insuficiências nos conhecimentos gerais sobre matérias contabilísticas é a dificuldade do cidadão entender o relatório do auditor. Comenta-se com frequência que os relatórios de auditoria não alertaram para determinadas distorções das demonstrações financeiras e, por vezes, culpa-se o auditor pelos próprios erros ou omissões na informação auditada. Mas raramente se sabe o que efetivamente os auditores podem, com razoabilidade e responsabilidade, oferecer. Estamo-nos a referir ao que habitualmente se designa por audit expectation gap.

Tem-se tentado reduzir o audit expectation gap, sobretudo pela via de melhorias no relatório de auditoria, transmitindo com maior clareza as responsabilidades, o âmbito do trabalho e a opinião do auditor. A redução conseguida parece ser, no entanto, muito ténue, podendo questionar-se se não será mais eficaz privilegiar ações junto do cidadão (por exemplo, junto de associações de investidores), com vista a que a responsabilidade do auditor e a existência de determinados fatores sempre presentes no processo de auditoria, como a materialidade e o risco, façam parte do conhecimento geral.2

Recordamos, por último, um caso ocorrido há mais de 15 anos. Durante uma campanha eleitoral para a Assembleia da República, determinado partido prometeu que se ganhasse as eleições os impostos não subiriam. O partido ganhou as eleições, formou governo e poucos meses depois as propinas no ensino superior público foram aumentadas. Sucedeu, então, que num debate televisivo foi afirmado a um secretário de Estado que o Governo, contra repetidas promessas eleitorais, tinha acabado de aumentar impostos. Perante esse «facto irrefutável», o secretário de Estado ficou atónito e sem resposta. Os participantes no debate desconheciam, pelos vistos, a noção comezinha de que taxas são encargos suportadas pelos beneficiários diretos de um serviço público, característica que as distingue dos impostos. E não se trata, como se sabe, de mera questão terminológica, dado que determinados serviços públicos serem financiados por taxas ou apenas por impostos é opção política repleta de consequências económico-sociais.

A concluir, sublinhamos que:

- Atento o objeto da Contabilidade

- informação e controlo tanto dos nossos próprios valores e riqueza, como indivíduos, como dos valores e riqueza das organizações que zelam (ou que deviam zelar) pelas poupanças dos cidadãos, bem como daquelas que nos empregam e que continuarão, se respeitarem determinados equilíbrios, a proporcionar- nos emprego e os correspondentes rendimentos – é, no mínimo, estranho que o cidadão se alheie de uma disciplina essencial para si próprio e para a compreensão da sociedade;

- A sucessão dos chamados escândalos financeiros, envolvendo pessoas e entidades supostamente acima de qualquer suspeita, evidencia a necessidade de se (re)construir um sólido sentido de responsabilidade na gestão das organizações, parecendo ser para esse fim fundamental o acompanhamento das unidades económicas e das respetivas contas por cidadãos informados e exigentes;

- O conhecimento e a cultura, nunca será de mais lembrá-lo, transformam o ser humano;

- Como observou o Professor Jorge Tua Pereda, quem não sabe História limita-se, quando olha para as ruínas de um monumento (por exemplo, para o Coliseu de Roma), a ver pedras.

- A cultura contabilística pode, seguramente, transformar o cidadão em alguém socialmente mais capacitado e responsável.

Notas

1 Manifestou-se, nesse caso, a função de avaliação social da Contabilidade. Houve um instrumento (a Contabilidade) que permitiu distinguir um gestor criterioso e responsável de outros. Vide, a propósito, Spitz e Scheid, em Révue Française de Comptabilité, n.º 382, novembro de 2005, pp 28-31. Os autores destacam três tipos de funções sociais da Contabilidade: políticas, associadas, por exemplo, ao controlo na arrecadação de receitas fiscais; de arbitragem, permitindo conciliar interesses, através, por exemplo, da apresentação periódica de contas ou de relatórios elaborados com vista a fusões e aquisições; de avaliação social, proporcionando a distinção entre gestores criteriosos e não criteriosos.

2 As nossas referências ao audit expectation gap estão deliberadamente abreviadas. Há abordagens mais alargadas ao tema, por exemplo, nos trabalhos de Gray et al. (2011) e Ruhnke e Schmidt (2014), autores que salientam que o audit expectation gap tanto pode radicar em expectativas erradas do público como no desempenho do auditor ou nas próprias normas de auditoria.

Por Helena Inácio e Rui Mota - Docentes do ISCA-UA

Bibliografia disponível em («A Ordem – Publicações – Revista TOC – Bibliografia»)


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